quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Amal Hussain, mais uma criança vítima da indiferença

Campo de refugiados no Iêmen

Irreconhecível humanidade em que uma criança de sete anos morre à míngua, desnutrida, com fome, cercada de potências econômicas e armamentistas por todos os lados. Foi assim que a pequena Amal Hussain deixou sua mãe Mariam Ali aos prantos, e um pai revoltado porque não tinha dinheiro para encher o tanque do carro e leva-la a um hospital. 

Morreu no dia 26 de outubro, no norte do Iêmen, país cercado pelas teocracias rivais do Irã e da Arábia Saudita. O mundo inteiro viu, ouviu e acompanhou toda a tragédia que assola mais de dois milhões de crianças que sofrem de desnutrição no Iêmen.

O nome de Amal em Árabe significa “esperança”. Segue um acróstico em homenagem a essa vítima da desumanidade:


Amada esperança,
Morta na infância,
Antes de ser criança...
Longe da existência.


Hígida nos braços,
Um olhar destroçado...
Silêncio refugiado
Sem bandeira nem paz.
Ávida, a mãe chora:
Inocente de outrora,
Nuvens de agora.

sábado, 17 de novembro de 2018

Mais médicos, menos ideologias e uma saúde pública

                                                                                  Foto: Araquém Alcântara
Resolvi falar um pouco sobre a saída dos médicos cubanos no programa Mais Médicos. Antes de qualquer coisa, e acima de tudo, deixo claro que o considero um belo programa de saúde pública, embora esteja muito longe de ser a solução para os nossos problemas nesse quesito. Aliás, muito longe disso.
O programa foi um bom achado para dar assistência mínima a quem, nos rincões e nas áreas indígenas, não tinha socorro médico algum. Aí, vem o argumento contrário de que nessas regiões não existem infraestrutura. Bom, penso que é melhor um médico onde não há infraestrutura, do que a ausência dos dois. Para essas pessoas, costumo argumentar que, nessas regiões, uma parteira, um enfermeiro, são pessoas capazes de ajudar a população pobre no sentido de ter reduzido seu sofrimento e até mesmo os riscos de morte. Mas, esse argumento nem sempre os convence. Reconheço, pode ser que eu esteja errado.


Na sequência, geralmente, vem o argumento ideológico. Esse é o pior. Querem nos convencer de que por serem de Cuba - portanto, filhotes da ditadura comunista - não têm diploma compatível com aqueles concedidos no Brasil; não têm preparo, conhecimento médico suficiente para cuidar da nossa gente humilde.
Foi por isso que pedi autorização a duas pessoas para narrar a experiência de suas famílias, lá nos rincões do Brasil esquecido, abandonado pelo poder público, pelos políticos, distante principalmente da saúde pública.
O primeiro caso é o da Jane, diarista aqui de casa aos sábados. Ela é uma pessoa de poucas letras, mas, de uma experiência de vida inigualável.  Veio para Brasília trazendo a filha mais nova e deixando dois filhos com a mãe, no interior do Maranhão. Foi explorada, trabalho escravo, quando aqui chegou, em plena capital da República. Trabalhou meses na casa de uma amiga da família sem receber um tostão.

                                                                                 Foto: Araquém Alcântara
Pois bem. O Mais Médicos, na avaliação dela, é um programa salvador para o seu pai, sua família, amigos, conhecidos e desconhecidos da cidade de Serrana e de toda as outras daquela região. Quem são os médicos que estão por lá? Os cubanos. Foram eles que atenderem o pai da Jane, de um problema sério de saúde, oferecendo dedicação e carinho, coisas que todos precisam nesse momento.
Ficou triste, emocionada, quando soube que os médicos cubanos vão deixar o programa e sair daquele rincão maranhense. Tem esperança de que eles sejam substituídos pelos competentes e preparados médicos brasileiros, devidamente diplomados. Acredito que ela até enxergue um fator atrativo para a ida dos profissionais brasileiros: eles não terão que pagar 70% dos seus salários ao Estado. Se forem para essa região de fato, provavelmente, a tristeza da Jane terá sido em vão e todos voltarão a sorrir e a ter assistência médica básica, mínima.


Segundo caso. O da Eva, carinhosamente chamada por nós de Evinha. Doméstica, assalariada, também deixou a família no interior para tentar uma vida melhor na capital da República. Veio do norte de Minas, das barrancas do São Francisco. Não trabalhou em regime de escravidão, mas, foi explorada. Muito inteligente. Foi vítima de criação adotiva. Faltou estímulo, apoio, para avançar nos estudos, ficando só com o ensino primário completo.
Pois bem, seu depoimento é o de que o programa Mais Médicos foi a salvação de um povo esquecido naquele rincão abandonado na fronteira com a Bahia. Ela conhece pessoas que choraram e chegaram ao desespero com a notícia da saída desses profissionais, para eles, tão dedicados e atenciosos. Talvez, no entanto, sejam salvas pela adesão dos médicos brasileiros ao programa para substituir os cubanos. Isso não é impossível, mas está gerando preocupação.

                                                                                  Foto: Araquém Alcântara
Preocupações? Sim, e bem justificadas. Fico receoso quando vejo um relato no Facebook, reproduzido abaixo, feito por uma cidadã que me garantiu ser o retrato fiel da realidade. Ela mesma diz que só acredita porque ouviu com os dois ouvidos que Deus lhe deu. Se a maioria dos nossos profissionais de saúde pensar assim, começo a entender a tristeza da Jane, da Evinha e de todos os seus familiares. Não vai dar certo.


sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Tolerância, já! Antes que seja tarde demais...


Tolerância é uma palavrinha mágica que precisa ser cultivada, preservada, distribuída sem parcimônia. Principalmente depois de tudo que vimos, acompanhamos e, de certa forma, participamos, nesses meses de campanha eleitoral on line. A primeira da história brasileira tão marcada pelas redes sociais não foi bom exemplo no quesito tolerância.
Nunca é tarde para nos redimirmos. Todos nós. No dia de hoje, uma sexta-feira depois de um feriado, melhor ainda porque hoje é o Dia Internacional da Tolerância. Começou a ser gestado em 1993, quando a Conferência Geral da Unesco elegeu 1995 como o Ano das Nações Unidas para a Tolerância. E foi posto em prática, pela primeira vez, no dia 16 de novembro de 1996. 


Um dia em que são desenvolvidas diversas ações para combater os mais variados tipos de intolerância cultural, econômica, religiosa, sexual e racial. Na definição dos membros da ONU, ela é o respeito, a aceitação e o apreço pela diversidade em todos os seus âmbitos. Mais interessante foi a determinação de que não deve ser considerada uma concessão, mas, sim, um reconhecimento dos direitos humanos universais e das liberdades fundamentais de cada pessoa.
Muitas opiniões foram assustadoras nessa campanha eleitoral no quesito intolerância. A imensa maioria esqueceu-se de uma outra palavrinha chave no relacionamento entre pessoas: gentileza, que, inclusive, também é referenciada neste mês de novembro (dia 13). As duas são irmãs siameses.
Pessoalmente, fiquei muito chocado com a intolerância para com os artistas. Mais particularmente com as grosserias, xingatórios proferidos contra Chico Buarque de Holanda, um artista que admiramos muito e que tem papel relevante na nossa cultura. País nenhum consegue um estágio avançado de desenvolvimento se não valorizar seus artistas e a cultura do seu povo.

As pessoas precisam, sempre, se colocar no lugar do outro. A aceitação, e por consequência a tolerância, começa por aí. Importante deixar o lugar de dono da verdade. Observar como os outros lidam com determinados fatos de acordo com os seus valores, crenças, razões e motivações.
Alguém já disse que muitas vezes o que não suportamos no outro é o reflexo daquilo que não suportamos em nós mesmos. Quando o conflito entre pessoas ocorre, o ideal é mesmo respirar fundo, e evitar que a irritação conduza nossos argumentos. Os membros da ONU pensaram em tudo isso e mais algumas coisas sobre as quais devemos refletir nesta data. Foi uma bela decisão.
Salve o Dia Internacional da Tolerância e sejamos todos adeptos dos princípios que a conduzem. Como está umbilicalmente ligado à cultura, o ZecaBlog adere a essa comemoração. 
E que tenhamos todos uma vida mais tolerante, cheia de amor. Será bem melhor, nos sentiremos mais leves. E por falar em amor, um pouquinho desse tema com Chico e a cantora portuguesa Carminho...


Tolerância é uma necessidade em todos os tempos e 
para todas as raças. Mas tolerância não significa aceitar o que se tolera.
Mahatma Gandhi

A primeira lei da natureza é a tolerância - já que
 temos uma porção de erros e fraquezas.
Voltaire

domingo, 11 de novembro de 2018

Do Barbeiro de Sevilha aos barbeiros do Machombombo


O amigo Baltazar Cardoso postou no Facebook essa foto acima. Barbeiro e cabeleireiro lá de Uruaçu – aquela cidade que fica no centro de Goiás, do Brasil, da Terra, quiçá, do Universo –, ele faz parte da nossa história, não apenas pela sua profissão, mas também por estar inserido na nossa cultura musical e folclórica. O cliente dele é doutor Cristovam Francisco Ávila, nosso mestre maior e sobre quem já escrevi neste blog (para ler, clique aqui).
A foto fez-me voltar no tempo e lembrar de quando erámos obrigados a ir ao barbeiro. Criança, de um modo geral, não gosta de cortar cabelo. No meu caso, era um pouco diferente. Frequentávamos a barbearia do Valdomiro, que era bem em frente da nossa casa. Só atravessar a rua. E nela tinha Zé Paraibano, um senhor sério, um pouco carrancudo, mas, engraçado, piadista, contador de histórias.


Então, ir ao barbeiro era interessante. Conversar e ouvir histórias. Lembro que estava um dia no armazém de meu pai, quando meu primo Luizinho entrou alvoraçado: “Zé, vamos lá na barbearia, Luís Coelho tá cortando o cabelo com Zé Paraibano”. Luís Coelho, piauiense, boêmio, primo da minha mãe, foi uma das pessoas mais engraçadas que conheci. Fomos pra lá e rimos até sair lágrimas pelo canto dos olhos e sentir dores na barriga.
Baltazar além de talento para a profissão, fez curso em Brasília de barbeiro e cabeleireiro, porque, segundo ele, são coisas diferentes. Mandou colocar uma placa na frente da barbearia enaltecendo esse item do seu currículo. O pintor escreveu: “Barbeiro e Cabeleireiro concursado”. Ou seja, em Uruaçu, pra exercer essa profissão era preciso fazer concurso.


Mas, a profissão é bem mais antiga do que a nossa memória alcança. Na Grécia, fonte da sabedoria com os filósofos, havia o culto também à beleza. Os guerreiros e os homens pertencentes à nobreza usavam cabelos compridos. Os filósofos também deixavam os cabelos crescerem e a barba, tradicionalmente, era densa, justamente para aparentar sabedoria. Os escravos não podiam ter barba, nem bigode, e usavam cabelos curtos e liso. Já os jovens imitavam os penteados de Apolo e Arquimedes.
Logo surgiram os primeiros salões de beleza e a profissão de barbeiro, exclusiva do sexo masculino. Fico imaginando se vivêssemos naquele tempo, meu primo Luizinho entraria lá em casa: “Zé, vamos lá na barbearia, Sócrates foi aparar a barba!”.
Mas, nos séculos XVI e XVII, a profissão era associada às de médico e de dentista. Os barbeiros foram acusados de praticar a sangria de forma exagerada, sem pudor. No século XIX, as profissões de dentista e de médico se afastaram da de barbeiro. E somente no século XX a mulher foi incorporada à profissão e também admitida como cliente. Surgiram os salões unissex.



No mundo da artes, Fígaro, O Barbeiro de Sevilha, personagem da obra de Gioacchino Rossini, é um profissional que faz de tudo na sua cidade: arranja casamentos, ouve confissões e espalha boatos. A ópera conta a história de sua tentativa de ajudar um conde a conquistar o coração de uma jovem. 
No Brasil, a profissão foi trazida pelos jesuítas. Esteve durante muitos anos associada aos escravos. E por consequência ganhou um vínculo muito forte com a música. Com muita liberdade, eles tocavam lundus, dobrados, quadrilhas, fados, fandangos e chulas, muito em voga naqueles tempos. Estavam sempre presentes nas festas, nas portas das igrejas e eram até reverenciados com a alcunha de "música de barbeiro". Jean-Baptiste Depret retratou isso muito bem em suas belas pinturas.
A associação do amigo Baltazar e de sua profissão à música tem raízes históricas e culturais. Baltazar toca violão, canta e participa ativamente das folias de reis em Uruaçu. Nossas homenagens a ele, a todos os barbeiros, in memoriam, a Valdomiro e Zé Paraibano. Nossos barbeiros do Machombombo (córrego que corta Uruaçu).

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Véspera do Dia de Finados é o dia dos sepultadores


Tem um profissional que ninguém lembra de homenagear. Quando lembra quer esquecer. Mas, o dia dele também existe. E é comemorado hoje, dia do sepultador. Pesquisei e descobri – salvo um melhor trabalho no Google, o novo pai dos burros – que apenas São Paulo tem um dia dedicado a esses trabalhadores também conhecidos com coveiros. O paulista é mais realista... sei lá, menos chegado a sentimentalismos ultrapassados.
Essa homenagem existe graças à Lei 12.940 de 2008, quando era governador do estado José Serra. Piada pronta para o outro José, o macaco Simão, o colunista-humorista da Folha de São Paulo, que sempre comparou Serra ao Vampiro Anêmico. Serra, diria Simão, trabalhou nesse caso em causa própria.
A verdade verdadeira é que ninguém lembra dessa pobre gente. Os coveiros, melhor, os sepultadores, não são vistos, ou não são bem vistos, mesmo estando ali, atenciosos, dedicados e reservados, num momento tão difícil da vida das famílias. Com seus uniformes azuis, de faixas amarelas, cores nada tristes, não manifestam sentimentos, simpatia ou antipatia, alegria ou tristeza, comiseração, revolta... nada.


Estão ali porque esse é o ganha-pão deles de cada dia, de todos os dias, faça chuva ou faça sol, feriado, dias da semana, sábados e domingos. Até mesmo no Dia de Finados, comemorado no dia seguinte... Vai que alguém resolve morrer no Dia dos Mortos.
Fazem até piadas com o pobre do sepultador. Pode?

No cemitério o coveiro cavava uma nova cova, mas estava tão distraído que não percebeu que cavava demais. Após algum tempo ele olhou para cima e percebeu que não conseguiria sair dali sozinho. Ele gritou para pedir ajuda, mas ninguém apareceu. Passaram-se várias horas e ele já estava desesperado e com muito frio. Ele então escuta o som de passos e grita mais uma vez por ajuda, até que um bêbado se aproxima do buraco.
- O que aconteceu? - pergunta o bêbado.
- Você tem que me ajudar, eu estou preso nesse buraco, morrendo de frio - explica o coveiro.
O bêbado responde:
- É claro que está com frio, tiraram toda a terra de cima de você. Não se preocupe, pobre mortinho, vou te ajudar!
E o bêbado cuidadosamente começou a enterrar o coveiro.


Aos sepultadores nossas mais sinceras homenagens. Não existe motivo algum para eles se envergonharem da profissão. 
Num enterro de um amigo, até comentei com um desses profissionais. 
- Não é fácil essa profissão, né? Ter que enterrar uma pessoa.
Bem rápido e indiferente, me respondeu:
- Nem tanto... antes ele do que eu.