Nossa
mãe cismou, aos 86 anos, com perda significativa da visão, que deveria voltar a manusear
máquina de costura “nem que fosse para fazer um pano de prato”. Manifestou tal
desejo à neta Tatiana Barroso e quase que a obrigou a montar o cenário ideal
para o dito desejo: máquina no lugar e no ponto certo, mesa e cadeira
condizentes, iluminação adequada, linha e pano apropriados.
Viajei
no tempo. A máquina de costura da minha mãe era o meu carrinho de brinquedo. Pedal
virava assento. Aquele mecanismo circular, por onde passava o fio propulsor da
engrenagem – imenso para os olhos de uma criança –, era o volante. A velocidade
podia ser controlada pelo balançar do traseiro na prancha que servia de pedal. Adrenalina
pura.
Também
era naquele mecanismo que, na segunda metade dos anos 1950 e por toda a década
seguinte, minha mãe costurava – fazia mesmo – nossas roupas e não apenas panos
de prato. Embaiava calças curtas e compridas, vestidos e shorts. Tudo com muito
amor e carinho de uma mãe que perdeu a mãe antes dos nove anos, não teve
infância própria das crianças e viveu de casa em casa de parentes até conseguir
seu próprio lar.
Foi naquela
máquina de costura que Iracema Barroso Camapum - ao casar-se, com 15 anos, abriu
mão do pomposo nome de Maria Iracema do Perpétuo Socorro Coelho Barroso - viu
passar tantos anos, ouviu tantas histórias, confidências, recebeu notícia
tristes e alegres. Por ali, vimos correr lágrimas e abrirem-se sorrisos. Foi
por ali que dona Ira criou seus filhos e ainda ajudou os netos e alguns
sobrinhos.
Foram
todos esses sonhos, vivências e convivências que nossa mãe, certamente, pensou
em resgatar ao sentar-se novamente em frente a uma máquina de costura, mesmo
não tendo mais como contar com os olhos da juventude e a firmeza das mãos da
mocidade.
Máquina
de costura nova, moderna, elétrica também serve para atiçar a memória, trazer
recordações que ficaram guardadas em uma Vigorelli antiga, manual, desgastada
pelo tempo e preservada pelo uso carinhoso e cuidadoso. É assim que se constrói
uma história, um mundo, uma família e tantos sonhos.
Tudo
hoje se resume a uma foto de uma máquina de costura guardada no canto de uma
sala. Mas como dói:
É a doçura da vida
Sofrida de outrora.