sexta-feira, 31 de maio de 2024

Arte de costurar traz memórias e até resgata sonhos


Nossa mãe cismou, aos 86 anos, com perda significativa da visão, que deveria voltar a manusear máquina de costura “nem que fosse para fazer um pano de prato”. Manifestou tal desejo à neta Tatiana Barroso e quase que a obrigou a montar o cenário ideal para o dito desejo: máquina no lugar e no ponto certo, mesa e cadeira condizentes, iluminação adequada, linha e pano apropriados.

Viajei no tempo. A máquina de costura da minha mãe era o meu carrinho de brinquedo. Pedal virava assento. Aquele mecanismo circular, por onde passava o fio propulsor da engrenagem – imenso para os olhos de uma criança –, era o volante. A velocidade podia ser controlada pelo balançar do traseiro na prancha que servia de pedal. Adrenalina pura.

Também era naquele mecanismo que, na segunda metade dos anos 1950 e por toda a década seguinte, minha mãe costurava – fazia mesmo – nossas roupas e não apenas panos de prato. Embaiava calças curtas e compridas, vestidos e shorts. Tudo com muito amor e carinho de uma mãe que perdeu a mãe antes dos nove anos, não teve infância própria das crianças e viveu de casa em casa de parentes até conseguir seu próprio lar.


Foi naquela máquina de costura que Iracema Barroso Camapum - ao casar-se, com 15 anos, abriu mão do pomposo nome de Maria Iracema do Perpétuo Socorro Coelho Barroso - viu passar tantos anos, ouviu tantas histórias, confidências, recebeu notícia tristes e alegres. Por ali, vimos correr lágrimas e abrirem-se sorrisos. Foi por ali que dona Ira criou seus filhos e ainda ajudou os netos e alguns sobrinhos.

Foram todos esses sonhos, vivências e convivências que nossa mãe, certamente, pensou em resgatar ao sentar-se novamente em frente a uma máquina de costura, mesmo não tendo mais como contar com os olhos da juventude e a firmeza das mãos da mocidade.

Máquina de costura nova, moderna, elétrica também serve para atiçar a memória, trazer recordações que ficaram guardadas em uma Vigorelli antiga, manual, desgastada pelo tempo e preservada pelo uso carinhoso e cuidadoso. É assim que se constrói uma história, um mundo, uma família e tantos sonhos.

Tudo hoje se resume a uma foto de uma máquina de costura guardada no canto de uma sala. Mas como dói:


Essa costura
É a doçura da vida
Sofrida de outrora.


18 comentários:

  1. Emocionante, são memórias de um tempo distante e bem presente!

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  2. Vozinha maravilhosa! Que bela homenagem

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  3. Que lindo!! Costurar é terapia. Quero chegar nessa fase logo. Nesse momento sou arrumadeira, cuidadora, babá, e enfermeira kkkk

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    1. Terapia, mesmo, e prazerosa. Todas essas suas atividades são grandiosas. Tenha sucesso e obrigado pela participação aqui no blog.

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  4. Eu ganhei de minha mãe a máquina que era dela . Uso e guardo com carinho e realmente a costura nos trás memórias fortes e lindas 🥰

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    1. Isso mesmo. Guarde-a com carinho. É muito importante a preservação da nossa memória e dos nossos sonhos. Obrigado pela participação no blog.

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  5. Nossaaa! A vida da minha família, como a da sua, também, passou pela máquina de costura da minha mãe e pelo meu primeiro ofício, enquanto estudava o ensino de 1º grau, na adolescência.

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    1. Que bacana! Fico feliz por ter ajudado a relembrar esses momentos importante da sua vida. Recordar é viver! Obrigado pela participação aqui no blog.

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  6. Que beleza de crônica, da sua mãe e da sua infância!

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  7. Que bela homenagem a Dona Iracema .Essa cronica nos remete também à nossa infância. Parabéns Zé Carlos! Parabéns D. Iracema por sua força e garra para resgatar essa parte de sua história, costurando linhas e lembranças.

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    1. Obrigado pelas palavras carinhosas e pela participação aqui no blog. Abraço.

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  8. Amei. O meu amor pela costura não vem só da vovó Constância.

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  9. Com certeza! Herança dos dois lados da família. Obrigado pela participação aqui no blog. Abraço.

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