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Reminiscências,
lembranças, alma aquecida e mente cheia de contentamento. Foi assim que me
senti ao ler a crônica abaixo, do amigo, poeta, escritor, desembargador e
membro da Academia de Letras Goiana, Itaney Francisco Campos. Viajei no tempo
de volta para Uruaçu (GO), a nossa terrinha, aquela cidade querida encravada no
norte goiano, hoje à beira do lago Serra da Mesa. Resolvi publicá-la aqui no
blog para compartilhar esse deleite com as leitoras e leitores. Espero que
gostem. Beijos no coração.
Um Riacho Fluindo de Saudades
Itaney F. Campos
Nasci
e vivi a infância e adolescência na pequena e bucólica cidade de Uruaçu, no
norte goiano. Estão nela as minhas referências primordiais, meu vínculo
indissolúvel com o interior, os sonhos que carreguei ao longo da vida e uma
saudade incontornável, ainda hoje palpitante na alma. O canto da seriema, no
bosque, o latido noturno de um cachorro, o ciciar dos grilos, o coaxar de
sapos, o repicar de sinos na aurora, a imagem do riacho fluindo…tudo isso me
faz regressar, não importa onde eu esteja, à minha terra natal. Um profundo
sentimento de nostalgia transporta-me, no tempo e no espaço, para a pequena
cidade goiana fundada por meus avós. Ali, no meio da cidade, banhando os
terrenos em que se fixaram os meus antepassados, no início do século passado,
corria, como ainda corre, em calma e em meio a pedras, o Ribeirão Machambombo.
Nele banhei-me, em folguedos, no poço da passagem, vezes incontáveis.
Na
minha cabeça de menino, o Machambombo delimitava a coletividade urbana: do lado
de cá, os goianos, os da terra, os fundadores da cidade, a própria cidade, com
seus largos arborizados e suas ruas amigas. Do lado de lá, os novatos, os
chegantes, com seus estranhos costumes e seu sotaque regional - nordestino - ,
suas ruas esparsas e inóspitas. Em suma, região de gente sem raiz e, mais,
gente humilde, imigrantes. Lá não era exatamente a cidade, mas uma extensão
dela. Tudo de bom estava aquém do riacho, do Ribeirão dos nossos avós que as
suas margens ergueram suas casas e sua igrejinha. Estavam do lado de cá a
igreja catedral, a capela fundadora de Santana, o colégio, o comércio diário, o
campo de futebol, os amigos e parentes. Do outro lado, o comércio rústico, as
oficinas mecânicas, o comércio ambulante.
Em
tempo que não sei precisar e por razões obscuras então para mim, o panorama foi
se modificando. Sem mais nem menos, beneficiaram as ruas com meio fio, lá do
outro lado, instalaram-se vários comércios, ampliou-se a área urbana, construiu-se
a igreja S. Sebastião e abriu-se uma escola pública. Nosso lado começou a ficar
pra trás. O pior é que levaram para o lado de lá o cinema, então do Joventino,
com os filmes de Randolph Scott, Zorro e Tarzan, e ainda apareceu por aqueles
lados uma mocinha que fez meu coração disparar. Isso me levou a reformular os
conceitos. Do lado de lá, diga-se a verdade, estava o novo, o moderno, os
ventos do progresso e as melhores diversões, tirado o poço, a passagem, no Machambombo,
em que nos banhávamos, tentando nos refrescar, um grupo de garotos, às vezes
escondidos das mães. Eu estava com treze, catorze anos.
Por essa quadra, ouvi
comentários de um movimento do Exército, uma revolução, para tirar o presidente
da República, João Goulart, que tinha fazenda na nossa região, e tiraram, o que
achei lamentável, um desaforo. Afinal, ele, o senhor presidente da República,
era uma autoridade e amigo de um pessoal de Uruaçu. Certa feita, ele pôs a mão
em minha cabeça de menino e cumprimentou de forma afável, paternal mesmo. Um
homem bondoso. Nesse mesmo período, algum tempo depois, instalou-se em nossa
cidade a loja A Revolução. Achei que era do pessoal inimigo do Jango Goulart, e
fiquei aborrecido com a abertura dessa loja deles em nossa cidade. Para mim,
era “persona non grata”. Apesar de que eu achava que um presidente da República
não podia mancar, e Jango mancava, levemente mas mancava, o que me espantou
muito, quando vi.
Nessa
época, tínhamos tia Diva, quase uma segunda mãe, a trupe de primos, quase
irmãos; Tonico, em sua tenda de ferreiro, vivo até hoje; as tias Dica e
Olímpia, a bondade em forma de gente; o dentista Luiz Gomes, meu padrinho;
Laura Walgenbach, minha madrinha e contraparente, casada com um alemão cheio de
ironia, o Gustavim. E ainda Zequinha, o rei da gaita. Tínhamos papai, mamãe,
passeios na tapera e arroz com pequi, prato preferido lá em casa. No quintal, a
babosa, o brinco de princesa e a flor de bogari, rescendendo seu perfume
varanda adentro. Tudo vai se desfazendo nas névoas do tempo. Só o Machambombo
continua lá, a correr no seu leito estreito, de pedras, riacho bom para
lavadeiras. Na sua correnteza, nossos sonhos dissolutos, nossa infância
dissipada, um murmúrio contínuo de rio manso, a proclamar os sons da saudade.