Uruaçu,
no interior goiano, é uma cidade de muitas, belas e curiosas histórias. Uma
cultura enriquecida pelos diferentes migrantes de todos os cantos do país.
Gente que veio com suas lembranças e histórias passadas por seus ancestrais.
Pessoas que saíram em busca de uma vida melhor, vindas de todos os cantos e recantos do Norte, Nordeste,
Sudeste e, mais recentemente, do Sul do Brasil.
Uma dessas riquezas foi registrada e contada pela amiga, cronista e poeta Sinvaline Pinheiro, que, durante muitos anos, esteve à frente do Memorial Serra da Mesa lá na nossa querida cidade. Atualmente, ela tem um sítio pequeno, chamado Toca Vó Quirina, que serve para a produção comungada de várias espécies, além de ser um espaço de pesquisas e vivências a serviço da comunidade.
Aconteceu com o Seu Pedro (de chapéu, na foto acima, com o amigo Geraldão), numa de suas idas para pescar no lago. Mas, deixemos que Sinvaline, com seu jeitinho delicado, sensível, todo especial, conte tudo direitinho, sem inventar, nem esconder, nada...
Nego D’Água de Serra Da Mesa
Sinvaline Pinheiro
A construção do Lago Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a região Norte de Goiás, contudo trouxe o turismo, a pesca e, por debaixo dos panos, também fez surgir lendas e lendas...O lago cheio, fazendas antigas com suas casas assombradas, cavernas pré-históricas ficaram debaixo do volume imenso de 1.784 km² do espelho d’água.
Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma área pequena ou um lote e fazer um barraco ou um rancho, garantindo o local da pesca, principalmente do tucunaré. E esse lote ficou sobre qual casa assombrada?
Seu Pedro arrumou o ranchinho, fez a cerca e plantou mandioca, milho, pimenta, construiu a canoinha de pau e assim ele se sentia um verdadeiro fazendeiro.
Todas as tardes, já cansado, entra na canoinha e lá vai ele atrás dos peixes. Certo dia, já com o sol entrando, vê um vulto na água e não entende o que é.
Rema mais perto e o vulto afunda na água. Pensa que é um peixe grande e amarra a canoa por ali e recomeça a pesca. Para espantar as muriçocas, acende o pito de palha.
Sobrecarregado de lembranças, se assusta quando a canoa começa a balançar; olha em volta e não vê nada, nem ventando estava.
E a canoa não parava. Seu Pedro tira o facão e o segura na posição de ataque, seja o que for que aparecesse estava morto.
Um roncado o faz olhar para trás. Assustado, vê uma mão escura de dedos tortos segurando a canoa para que balançasse mais.
- Virgem Maria!
Junto com o grito o facão decepa os dedos que caem na água e pouco a pouco a canoa se acalma.
Seu Pedro, tremendo, nem conseguia remar para sair do lugar. Procurou vestígios de sangue e nada, só água.
Criou coragem e remou depressa para o barranco. Já com segurança, na margem, alumiou com a lanterna e viu um pedaço de pele enrugada na canoa. Levou para o rancho e com a luz clara conseguiu reconhecer um dedo magro, escuro e muito enrugado.
Enrolou-o em um pano, colocou-o dentro de uma lata e foi dormir, no outro dia levaria para alguém examinar e descobrir que bicho era aquele que queria afundar sua canoa.
A noite foi longa, de pesadelos. Lembrava-se das histórias do pai de que no antigo Rio Maranhão existia o Nego D’Água, muitas pessoas chegaram a vê-lo entre os rios Passa Três e Maranhão. Lembrou do Zé contando:
- Nóis ia atravessando o gado de nado e os canoeiro acompanhano, e os Nego D’Água ia nadando de pareia com o gado! Eles tinha cara de gente e pé de pato igual um reminho.
Já seu compadre Ademar dizia:
- O Nego D’Água tem dois fôrgos, um da água e outro de fora, o bicho é brabo!
O avô descrevia:
- Os Nego D’Água só tem um zoi grande no meio da testa, ele afoga os pescadô!
Dormiu variando e mal o dia clareou foi buscar o suposto dedo para levar a cidade de Uruaçu, tinha que tirar a dúvida.
A surpresa foi grande: a lata tinha sumido com o dedo e tudo!
Apavorado, ele correu para a cidade e contou a história para muitas pessoas e a confirmação de todos foi a que ele já esperava:
O Nego D’Agua voltou para a região norte de Goiás, era certo que com a bagunça da construção da hidrelétrica ele tivesse sumido e agora reaparece para vingar os rios represados. Os pescadores que se cuidem!
Seu Pedro coçou o queixo, pensou e disse para a mulher:
- É, agora eu cridito em Nego D’Água que meu pai contava, por pouco ele não afundou minha canoa... Danado esse bicho!
A mulher fez um muxoxo e completou:
- É, meu véio, ainda bem que agora esse tar de Nego D’Água vai aparecer mas fartando os dedos...
E
aí a história cresceu, tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em várias
partes do Lago Serra da Mesa. Os assustados que o veem só ainda não notaram se
é o mesmo Nego D’água sem os dedos da mão...