domingo, 24 de maio de 2015

Tardes de maio e a beleza dos versos de Carlos Drummond

                                                                                      Foto de Rafael Lavenére
                                                                                         Foto de Ronaldo Silva
Confesso que as tardes de maio sempre me impressionaram pela exuberante beleza em que se apresentam. Mais apaixonados por elas ficamos, quando lemos esse poema antológico de Carlos Drummond de Andrade. Em Brasília, o esplendor dessas tardes é impressionante. As tardes de outubro, por sua vez, também se destacam na natureza pelo peso em que se mostram: calor, mormaço, e aquela angústia das chuvas que mal chegaram ou estão demorando a chegar.
Divido esse poema de Drummond com os amigos e amigas aqui do blog, de forma a reverenciar as tardes de maio, e também para comemorar o número de 250 mil leituras a que chegou esse cantinho, em seus quatro aninhos de existência.
Pra completar o domingo, Djavan, cantando o seu Outono.
Salve a poesia, a música, a cultura e a natureza!

Tarde de Maio
Carlos Drummond de Andrade

Como esses primitivos que carregam por toda parte o
maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto e passa…
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.

E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Nunca há testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

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