Mais uma bela e extraordinária colaboração do poeta e desembargador Itaney Francisco Campos às páginas deste blog. Mais uma crônica, bonita e interessante, a desvendar os mistérios, as paixões e as angústias dos nossos cancioneiros populares. Desta vez, o texto centra-se na figura da mulher das décadas de 1940 e 1950. A crônica anterior, publicada em fevereiro (para ler clique aqui), discutia o papel masculino no universo da nossa MPB.
Tanto nesta,
quanto naquela, mestre Itaney revela seu profundo conhecimento da nossa
cultura, abordando aspectos não só dos temas enfocados nas letras das canções,
como também da religião e da política que predominavam naqueles anos.
Bom chega
de chorumelas. Deixemos que a crônica fale por si, caso contrário isso aqui vai
acabar virando prolegômenos. Mas, não deixem de ouvir, no final, a bela canção de Lupicínio Rodrigues, na voz do próprio autor.
Mulher e perfídia no imaginário
da canção brasileira dos anos 50
Por Itaney Francisco Campos
No imaginário da música popular brasileira das décadas de 1940 e 1950, para ficar limitado a esse período, a mulher constituía-se em fator de derrota social e moral do homem devastado pela paixão. A ele, nos termos do padrão social vigente, proibiam-se as demonstrações de fraqueza e mesmo as manifestações explícitas de sentimentos, próprias das mulheres, de sorte que, ao deixar-se dominar pelas emoções e sentimentos, tornava-se escravo da mulher e, nessa condição, exauria-se de sua virilidade e hombridade, caindo nas malhas da humilhação e da derrota.
Essa era a
representação do homem sensível, presa da sedução feminina. Na instância da
música, era-lhe dado, no entanto, externalizar as dores da alma, confessando
sua debilidade, seus medos e ansiedades, inclusive os fantasmas da paixão que o
assediavam. A música funcionava então como catarse. Nesse plano, considerando a
canção “O ébrio”, de Vicente Celestino, que se tornou filme, com o mesmo título
e estrondoso sucesso, tem-se a narrativa de uma figura masculina dominada pelo
vício da bebida alcoólica, que busca justificar-se e exculpar-se atribuindo à
mulher que amara e que o abandonara a sua condição de degradação moral e
social.
No
contexto dessa espécie de canções, a mulher é um ser poderoso, em virtude de
sua capacidade de sedução, ao mesmo tempo em que é retratada como uma figura
volúvel, insensível, capaz de abandonar o companheiro, em busca de outra
paixão, apesar do amor que aquele lhe dedicara. Nos textos do compositor e
cantor Lupicínio Rodrigues, famoso pelas canções de "dor de
cotovelo", o homem é idealizado como um ser destinado ao sofrimento,
inevitável decorrência dos desencontros do amor. A figura feminina,
recorrentemente, é idealizada como infiel, incapaz da entrega amorosa e
dominada pela dissimulação. É a representação da Eva bíblica, mestra na arte da
dissimulação, que levou Adão à condenação eterna. Nessa representação do imaginário,
o homem aparece como um ser generoso, pusilânime e magnânimo, ao mesmo tempo,
capaz de, mesmo depois de “ignóbil traição”, acolher a mulher, “cansada de
viver na rua”.
No plano ficcional dessa composição, que veiculava um romantismo tardio, porquanto esse sentimento foi explorado como gênero na literatura brasileira na metade do século anterior (segunda metade do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX), a vida é uma impossibilidade, à ausência do vínculo amoroso, manifestado ao exaspero, quase sufocante, assumindo a dimensão predominante da existência, sua razão única de ser. Nesse arquétipo, a mulher é dotada das artimanhas e malícia da serpente bíblica.
No plano ficcional dessa composição, que veiculava um romantismo tardio, porquanto esse sentimento foi explorado como gênero na literatura brasileira na metade do século anterior (segunda metade do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX), a vida é uma impossibilidade, à ausência do vínculo amoroso, manifestado ao exaspero, quase sufocante, assumindo a dimensão predominante da existência, sua razão única de ser. Nesse arquétipo, a mulher é dotada das artimanhas e malícia da serpente bíblica.
Em
texto antológico sobre a canção “O ébrio apaixonado”, ressalta Maria Izilda
Matos que “não se identifica a produção musical como reflexo; as músicas
aparecem como reflexo do imaginário”. Assim, o bar é o espaço do convívio, das
confidências, do lazer, espaço, no entanto, marcadamente reservado aos homens.
O lar é o espaço sagrado da mulher, que ali reina, como pilastra fundamental da
família. A desconstituição e falência do casamento eram, em geral, atribuídas à
responsabilidade da mulher, que não soubera segurar o marido ou manter-se fiel
a ele, amando-o, respeitando-o e cuidando adequadamente do companheiro.
Esse
estereótipo veiculado pela música popular encontrava eco na sociedade
brasileira, em vista do estrondoso sucesso da canção e do filme que se lhe
seguiu, com a mesma temática. No texto intitulado “Ao sul do corpo”, a
historiadora Mary del Priore discorre sobre a função da maternidade e as
mentalidades no período do Brasil Colônia, anotando que o conceito de mulher
virtuosa e honesta estava relacionado à manutenção da virgindade e da abstenção
do contato sexual e corporal até a ocorrência das núpcias, sob as bênçãos da
Igreja e a chancela do Estado. A virgindade feminina era uma exigência social e
erigia-se como valor absoluto, pois a prática sexual antes e ou fora do
casamento formal desonrava a mulher e conspurcava a honra da família. Seu
recolhimento ao Convento, caso infringisse essa norma de conduta, era comum no
período da Colônia e do primeiro e segundo Império. Se à cópula não se seguisse
o casamento, só poderia redimir-se recolhendo-se ao Convento, prestando votos
de total entrega a Cristo, livrando o núcleo familiar de sua presença
vergonhosa.
A gravidez
tornava tudo mais difícil e grave. O bastardo poderia ser entregue a uma
instituição social e o registro da paternidade era legalmente proibido, na
hipótese de o genitor ser casado com outra mulher. A Igreja, que então se
confundia com o Estado, atuava como fator inibidor da prática da liberdade
sexual, pregando a abstinência e acenando com o fogo do inferno para os
transgressores e impenitentes. Ao mesmo tempo, a instituição eclesiástica
funcionava como uma espécie de tutor, recolhendo os filhos sem pai e acolhendo
as decaídas, de forma a evitar a desagregação social. Exercendo o controle
social sobre a maternidade, a Igreja estava alerta para o risco da
miscigenação, capaz de manchar o ideal de pureza da raça, evitando que se
formasse uma sociedade de mulatos e mestiços.
Clementina de Jesus, figura marcante na MPB |
No
imaginário da época, só os sagrados laços do matrimônio eram aptos a
possibilitar a estabilidade e respeitabilidade social, para homens e mulheres,
de forma que a mulher, ao ceder à própria sensualidade e manter relações
sexuais “ilícitas procurava eximir-se do repúdio social, buscando justificar-se
e atribuir a responsabilidade ao seu sedutor, que a teria enganado sob falsas promessas
de casamento”. Era uma forma de atenuar a sua culpa, reconhecer o erro e
induzir ao casamento forçado. Procurando transparecer uma imagem de recato e
pudor, e até acreditando mesmo nisso, a mulher deflorada buscava a proteção do
Tribunal eclesiástico, redimindo-se do erro e suplicando a aceitação da
família.
Nada
obstante, ou por isso mesmo, esses estereótipos e elementos imaginários
representados nas canções ecoavam uma realidade social em que muitos
concubinatos se estabeleciam, com proliferação de filhos espúrios e naturais,
inclusive filhos de religiosos, que haviam feito votos de castidade. Nos
sertões de Minas e Goiás, no período colonial e mesmo do império, grande número
de sacerdotes mantinha uma concubina, na linguagem da época, teúda e manteúda,
sob a falsa aparência de zeladora da igreja e da Casa paroquial. As canções das
décadas de 1940 e 1950, sobretudo, mediante representações refletiam os
preconceitos em relação às mulheres, reforçando os mitos e argumentos de uma
sociedade patriarcal, conservadora e impregnada dos valores judaico-cristãos,
que só a modernidade, a revolução sexual e a emancipação feminina conseguiram
fragilizar.
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