terça-feira, 5 de agosto de 2014

A mulher no imaginário da MPB dos anos 40 e 50



Mais uma bela e extraordinária colaboração do poeta e desembargador Itaney Francisco Campos às páginas deste blog. Mais uma crônica, bonita e interessante, a desvendar os mistérios, as paixões e as angústias dos nossos cancioneiros populares. Desta vez, o texto centra-se na figura da mulher das décadas de 1940 e 1950. A crônica anterior, publicada em fevereiro (para ler clique aqui), discutia o papel masculino no universo da nossa MPB.
Tanto nesta, quanto naquela, mestre Itaney revela seu profundo conhecimento da nossa cultura, abordando aspectos não só dos temas enfocados nas letras das canções, como também da religião e da política que predominavam naqueles anos.
Bom chega de chorumelas. Deixemos que a crônica fale por si, caso contrário isso aqui vai acabar virando prolegômenos. Mas, não deixem de ouvir, no final, a bela canção de Lupicínio Rodrigues, na voz do próprio autor.


Mulher e perfídia no imaginário
da canção brasileira dos anos 50

Por Itaney Francisco Campos

No imaginário da música popular brasileira das décadas de 1940 e 1950, para ficar limitado a esse período, a mulher constituía-se em fator de derrota social e moral do homem devastado pela paixão. A ele, nos termos do padrão social vigente, proibiam-se as demonstrações de fraqueza e mesmo as manifestações explícitas de sentimentos, próprias das mulheres, de sorte que, ao deixar-se dominar pelas emoções e sentimentos, tornava-se escravo da mulher e, nessa condição, exauria-se de sua virilidade e hombridade, caindo nas malhas da humilhação e da derrota.
Essa era a representação do homem sensível, presa da sedução feminina. Na instância da música, era-lhe dado, no entanto, externalizar as dores da alma, confessando sua debilidade, seus medos e ansiedades, inclusive os fantasmas da paixão que o assediavam. A música funcionava então como catarse. Nesse plano, considerando a canção “O ébrio”, de Vicente Celestino, que se tornou filme, com o mesmo título e estrondoso sucesso, tem-se a narrativa de uma figura masculina dominada pelo vício da bebida alcoólica, que busca justificar-se e exculpar-se atribuindo à mulher que amara e que o abandonara a sua condição de degradação moral e social.






No contexto dessa espécie de canções, a mulher é um ser poderoso, em virtude de sua capacidade de sedução, ao mesmo tempo em que é retratada como uma figura volúvel, insensível, capaz de abandonar o companheiro, em busca de outra paixão, apesar do amor que aquele lhe dedicara. Nos textos do compositor e cantor Lupicínio Rodrigues, famoso pelas canções de "dor de cotovelo", o homem é idealizado como um ser destinado ao sofrimento, inevitável decorrência dos desencontros do amor. A figura feminina, recorrentemente, é idealizada como infiel, incapaz da entrega amorosa e dominada pela dissimulação. É a representação da Eva bíblica, mestra na arte da dissimulação, que levou Adão à condenação eterna. Nessa representação do imaginário, o homem aparece como um ser generoso, pusilânime e magnânimo, ao mesmo tempo, capaz de, mesmo depois de “ignóbil traição”, acolher a mulher, “cansada de viver na rua”.
No plano ficcional dessa composição, que veiculava um romantismo tardio, porquanto esse sentimento foi explorado como gênero na literatura brasileira na metade do século anterior (segunda metade do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX), a vida é uma impossibilidade, à ausência do vínculo amoroso, manifestado ao exaspero, quase sufocante, assumindo a dimensão predominante da existência, sua razão única de ser. Nesse arquétipo, a mulher é dotada das artimanhas e malícia da serpente bíblica.

Em texto antológico sobre a canção “O ébrio apaixonado”, ressalta Maria Izilda Matos que “não se identifica a produção musical como reflexo; as músicas aparecem como reflexo do imaginário”. Assim, o bar é o espaço do convívio, das confidências, do lazer, espaço, no entanto, marcadamente reservado aos homens. O lar é o espaço sagrado da mulher, que ali reina, como pilastra fundamental da família. A desconstituição e falência do casamento eram, em geral, atribuídas à responsabilidade da mulher, que não soubera segurar o marido ou manter-se fiel a ele, amando-o, respeitando-o e cuidando adequadamente do companheiro.

Esse estereótipo veiculado pela música popular encontrava eco na sociedade brasileira, em vista do estrondoso sucesso da canção e do filme que se lhe seguiu, com a mesma temática. No texto intitulado “Ao sul do corpo”, a historiadora Mary del Priore discorre sobre a função da maternidade e as mentalidades no período do Brasil Colônia, anotando que o conceito de mulher virtuosa e honesta estava relacionado à manutenção da virgindade e da abstenção do contato sexual e corporal até a ocorrência das núpcias, sob as bênçãos da Igreja e a chancela do Estado. A virgindade feminina era uma exigência social e erigia-se como valor absoluto, pois a prática sexual antes e ou fora do casamento formal desonrava a mulher e conspurcava a honra da família. Seu recolhimento ao Convento, caso infringisse essa norma de conduta, era comum no período da Colônia e do primeiro e segundo Império. Se à cópula não se seguisse o casamento, só poderia redimir-se recolhendo-se ao Convento, prestando votos de total entrega a Cristo, livrando o núcleo familiar de sua presença vergonhosa.

A gravidez tornava tudo mais difícil e grave. O bastardo poderia ser entregue a uma instituição social e o registro da paternidade era legalmente proibido, na hipótese de o genitor ser casado com outra mulher. A Igreja, que então se confundia com o Estado, atuava como fator inibidor da prática da liberdade sexual, pregando a abstinência e acenando com o fogo do inferno para os transgressores e impenitentes. Ao mesmo tempo, a instituição eclesiástica funcionava como uma espécie de tutor, recolhendo os filhos sem pai e acolhendo as decaídas, de forma a evitar a desagregação social. Exercendo o controle social sobre a maternidade, a Igreja estava alerta para o risco da miscigenação, capaz de manchar o ideal de pureza da raça, evitando que se formasse uma sociedade de mulatos e mestiços. 


Clementina de Jesus, figura marcante na MPB

No imaginário da época, só os sagrados laços do matrimônio eram aptos a possibilitar a estabilidade e respeitabilidade social, para homens e mulheres, de forma que a mulher, ao ceder à própria sensualidade e manter relações sexuais “ilícitas procurava eximir-se do repúdio social, buscando justificar-se e atribuir a responsabilidade ao seu sedutor, que a teria enganado sob falsas promessas de casamento”. Era uma forma de atenuar a sua culpa, reconhecer o erro e induzir ao casamento forçado. Procurando transparecer uma imagem de recato e pudor, e até acreditando mesmo nisso, a mulher deflorada buscava a proteção do Tribunal eclesiástico, redimindo-se do erro e suplicando a aceitação da família.
Nada obstante, ou por isso mesmo, esses estereótipos e elementos imaginários representados nas canções ecoavam uma realidade social em que muitos concubinatos se estabeleciam, com proliferação de filhos espúrios e naturais, inclusive filhos de religiosos, que haviam feito votos de castidade. Nos sertões de Minas e Goiás, no período colonial e mesmo do império, grande número de sacerdotes mantinha uma concubina, na linguagem da época, teúda e manteúda, sob a falsa aparência de zeladora da igreja e da Casa paroquial. As canções das décadas de 1940 e 1950, sobretudo, mediante representações refletiam os preconceitos em relação às mulheres, reforçando os mitos e argumentos de uma sociedade patriarcal, conservadora e impregnada dos valores judaico-cristãos, que só a modernidade, a revolução sexual e a emancipação feminina conseguiram fragilizar.
 

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