Foi um bálsamo receber e ler essa entrevista que o amigo Maranhão Viegas fez com Manoel de Barros, no ano de 1991. Da mesma forma que o fez nas suas poesias e em todas as entrevistas que concedeu, também nesta o poeta mostra a grandeza da sua dimensão humana e poética. Vê a vida como ela é, sem invencionices e de uma forma tão simples e profunda, que tudo vira poesia.
Maranhão, pra quem não sabe e não o conhece, é um grande, um extraordinário jornalista, escritor e poeta. É o maior (i) responsável pelo surgimento e pela existência do ZecaBlog. Posso e devo considerá-lo o meu padrinho no mundo dos blogueiros.
Leiam a entrevista. É antológica e fala por si.
Por Maranhão Viegas
A passagem de
Manoel de Barros não foi uma surpresa pra mim. Como disse o amigo Bosco
Martins, na edição de ontem, do Correio, a morte a gente tem que aceitá-la como
uma decorrência do nascer.
Mas toda morte
nos faz refletir e a do Manoel, minha fonte de inspiração eterna, me fez
retornar ao passado. Eu era um jovem repórter de TV no início da década de 90,
do Século passado. E fui trabalhar em Campo Grande, terra onde o poeta viveu a
maior parte da vida. Um dia, recebi um desafio, foi em 1991: Entrevistar o poeta Manoel de Barros para a primeira revista científica da UNIDERP - Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal. Obter dele algo que ligasse a poesia à pesquisa e ao trabalho que a Universidade pretendia fazer no Pantanal. O convite veio da professora Yara Penteado e do professor Paulo Cabral. A Revista se chamaria ONATI. Topei na hora. Fiz a lista de perguntas e mandei pro Manoel, que já à época preferia as correspondências às entrevistas presenciais. 23 anos depois, relendo o que ele escreveu, constato - poesia não morre. Por isso, tomo a liberdade de enviar o conteúdo dessa nossa “conversa”, resgatando um pouco da poesia viva de Manoel de Barros, que eu tenho certeza, não nos deixará.
O peso das
contradições do Brasil lhe pesa também sobre a poesia?
Manoel de
Barros - Não pesam as
contradições do Brasil porque, na verdade a gente, eu, tenho muito mais
contradições do que o Brasil. Eu ganho do Brasil de 10 a zero. Acho que a gente
é poeta por isso mesmo: que precisa resolver as suas contradições. E porque não
as resolve, graças a Deus. Eu não resolvo essa briga dentro de mim senão com
palavras. E há uma figura de estilo que concilia muito a gente por dentro. Se
trata da antítese. A gente produz uma frase antitética e fica feliz. Parece que
a frase nos harmoniza. Assim como esta, por exemplo: Só as coisas rasteiras me celestam.
Manoel de
Barros - Sabe,
Maranhão, eu tenho um mundinho bem reduzido. Tentei algum tempo alargar esse
mundo lendo os filósofos, pensadores, romancistas, poetas de todos os lugares e
tempos. Vi pinturas, esculturas, vitrais, pessoas, países, ruinas, aldeias,
costumes, ternuras, desgraças. Andei por estradas modernas e por trilheiros. E
vi, como diz o Eclesiastes, que tudo é vaidade e vento. Isto seja: que tudo é
igual e vai pro pó. Não me impressiono com as tecnologias. Pra mim, elas
acrescentam algumas palavras novas, que ainda não aceito em meus poemas. Não
aceito porque essas palavras ainda não entraram no meu sangue. Componho como
compunha: a lápis e usando um velho dicionário português dos eremitas calçados
de 1870. E as minhas percepções sensoriais.
A Aldeia
Global nos permite estar hoje na África do Sul ou no Pantanal do Nabileque ,
com uma pequena diferença de fração de segundos. Há risco nessa evolução?
Voltar os olhos para o regional significa resguardar a identidade pantaneira?
Manoel de
Barros - Não há como
evitar as aldeias globais e seus efeitos. Elas invadem e destemperam quase
tudo. Mas o pantanal em seu todo, em sua ossatura geológica está resguardado.
Ou quase. O fato de ser uma região de enchentes periódicas, isso preserva um pouco
o pantanal. Ninguém se estabelece com indústrias ou supermercados no pantanal.
Porque em seis meses as águas lhes comem pelas beiradas. E tudo boia. E tudo
nada. Aquilo é celeiro de bichos e aves e não de cofres bancários. Com a paz
dos bichos vive a paz do homem pantaneiro. E viverá enquanto a natureza não
modificar a sua ossatura geológica.
Alguma vez
lhe passou pela cabeça criar um "dicionário da natureza"?
Manoel de
Barros - Você pode não
acreditar, mas eu não me emociono com a natureza como ela é. Suas águas, seus
bichos, sua vegetação. Até tenho um certo fastio da natureza. Igual Macbeth
falava: Tenho um certo fastio do sol. Talvez a gente queira fazer
um sol verde, um homem que voe como as noivas de Chagal, uma cavalo azul e de
asas. É evidente que eu, tendo sido criado no pantanal, tenha em mim um lastro
de brejos e de conchas. Tenho um sentido de abandono em mim. Um sentimento de
lonjuras, de distâncias, de lugares sem dono. Venho daqueles tempos em que o
pantanal era o ermo. Fui criado naqueles ermos. Por isso tenho em mim um
sentimento de abandono. Na minha meninice chegavam apenas carros de bois, de
três em três meses no lugar em que morávamos. De forma que essa angústia de
estar em lugar distante e perdido, me acompanha até hoje. Não me seduz ver as
paisagens do pantanal porque elas estão dentro de mim. O que preciso é
transfazê-las.
Você parece
ter feito uma opção por manter-se à margem. Do sistema, da mediocridade, da
excentricidade. Você se sente violentado nesses tempos de invasão e de quebra
de privacidade?
Manoel de
Barros - Existe uma
lenda de que eu tenha feito opção para viver à margem. E às margens. Mas, na
verdade, eu nunca fiz essa opção e a coisa é lenda mesmo. O que eu sou, sem
dúvida, é um tímido incurável. Sofro para atravessar um salão cheio de gente.
Sofro em solenidades. Ando sobre pregos se tenho que conversar com senhores
conspícuos. Até para entrar em salão de barbeiro, se o salão está cheio de
gente, eu sofro. Escolho sempre aqueles velhos salõezinhos de uma só cadeira. Aí
fico amigo do barbeiro e nos anedotamos. Daí, por não gostar de sofrer, fui me
afastando dos convescotes, das vernissages, dos inauguramentos, dos sodalícios.
Prefiro os lupanares do que os sodalícios. Vivo bem nas tocas. A gente acaba
descobrindo que no fechado o imaginário voa mais longe.
Mesmo sem
sair do Mato Grosso do Sul, sem cortar o contato com a sua terra, o seu olhar
tem sabor do universal. Que energia é essa que te alimenta a poesia?
Manoel de
Barros - Os olhos
enxergam melhor as coisas do nosso pequeno mundo particular. Aqui ou em Paris
os quintais têm as mesmas coisas: folhas secas, cacos de vidro, formigas, bosta
de rato, baratas cascudas. Passei algumas horas no quintal de Rodin. Eu estava
curioso para ver se os passarinhos de lá tinham duas pernas também, como os
daqui. Saí confiante que tinham. Então acertei as pequenas coisas que meus
olhos viam na minha terra, na minha cidade, no meu terreiro - eram quase que as
mesmas que eu vira no quintal de Rodin. E sei bem que só um milagre estético
pode tornar tudo isso universal. O que faz do particular uma coisa universal é
o tratamento estético que possamos dar a esse particular de cada um de nós.
Gilberto Gil
diz em uma de suas canções que "no sonho do poeta nada falta". Com
quê o poeta sonha?
Manoel de
Barros - Eu fantasio
completo. Eu fantasio mulheres, viagens, vulva, pevide, inocências. Queria ter
agora um olho de criança para ver o mundo pela primeira vez. (Meu olho está tão
gasto!) Eu ia dar nome às coisas. Cobra eu chamaria de flor que anda. Nuvem eu
chamaria de sol, etc. etc. Eu daria movimento às pedras. Faria árvore pensar.
Tudo o que eu tocasse teria um canto, uma cor, um amor. A solidão teria que
existir para que a alma funcionasse e se abrisse em sonhos. Eu sonho tudo. Eu
queria saber misturar melhor as palavras a ponto que eu fosse mais poeta.
Ao final, bem ao seu estilo,
o poeta me mandou um recado. O bilhete aí em cima guardo com o carinho de quem
realizou um sonho. O sonho de ter tocado o poeta e sua poesia.
Maranhão Viegas
Brasília, 14 de novembro, de 2014.
Nossa !!!! Que lindo!!!!!!! As palavras simples, encantadoras e oníricas. Agradeço ao Maranhão Viegas, obrigada.
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