quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Sérgio Ricardo, um gênio, fez muito mais que quebrar um violão

Foto Conteúdo Estadão/Arquivo

Estão fazendo, neste mês de outubro, 57 anos daquela noite inesquecível, sobre vários aspectos, em que o músico, compositor, cantor, ator e cineasta Sérgio Ricardo quebrou seu violão no palco e o atirou na plateia. Ele apresentava, ou melhor, tentava apresentar sua canção Beto, Bom de Bola, mas desistiu por que as vaias não permitiam que ele ouvisse a própria voz e muito menos os instrumentos que o acompanhavam.

-- Vocês venceram, vocês venceram! – disse repetidas vezes o artista Sérgio Ricardo, de nome de batismo João Lufti, nascido em Marília, interior de São Paulo, e descendente de pais sírios. Ato contínuo, quebrou, no palco, o instrumento que tanto apreciava e executava com maestria, atirando os restos mortais contra o público.

Foi desclassificado do III Festival da Canção da TV Record e o episódio marcou sua vida artística para sempre. Serviu para tirar, em parte, o brilho de um carreira marcada pelo talento, sensibilidade à toda prova e um visão de mundo fundamentada, acima de tudo, no humanismo. Sérgio Ricardo fez e interpretou canções belíssimas, foi um exímio pianista, inclusive ocupando, na boate Posto 5, em Copacabana, o lugar de ninguém menos do que Tom Jobim, de quem ficou amigo.

Foto Estadão Conteúdo/Arquivo

Ainda como João Lufti, compôs canções para o piano, passando a escrever letras e a cantá-las na boate. Seu talento só chamou a atenção do público brasileiro - que, naquela época, ao contrário dos tempos atuais, era muito exigente -, quando Maysa gravou sua bela canção Buquê de Isabel.

Conheceu João Gilberto, na casa de Nara Leão, pra onde foi levado por Miele. Mergulhou, então, nas águas profundas e melodiosas da Bossa Nova. Era o ano de 1958, e embalado por esse movimento, lançou o disco A Bossa Romântica de Sérgio Ricardo, que tinha como carro-chefe a música Zelão, que, bem ao estilo do autor, protagonizou a polêmica sobre a falta de engajamento do universo bossanovista. Chegou a lançar mais um disco nesse estilo: Depois do Amor. Mas, deu-se o que todos já pressentiam. O cantor e compositor deixou a Bossa Nova.

Enveredou-se pela arte do cinema, depois de adquirir boa experiência trabalhando como ator em televisão. Roda seu primeiro curta-metragem Menino de Calça Branca, que o aproxima da turma do cinema-novo, entre eles, Glauber Rocha. Em 1963, compôs a trilha sonora para Deus e o Diabo na Terra do Sol, e, em 1966, as canções para Terra em Transe.

Foto: Iugo Koyama/Estadão Conteúdo/Arquivo

Passou um período em Nova Iorque, quando tocou no histórico festival da bossa nova, no Carnegie Hall. Ficou oito meses procurando um produtor para seu curta-metragem e se apresentando, ao piano, em boates, como Village Vanguard. Voltou ao Brasil e foi contratado por Aloisio de Oliveira para os estúdios da Phillips, onde grava seu terceiro LP Um Senhor Talento, com canções belíssimas como Folha de Papel, Esse Mundo É Meu, Enquanto a Tristeza Não Vem, Barravento e A Fábrica.

Pela Phillips, ainda gravou A Grande Música de Sérgio Ricardo, com canções inéditas e de trilhas sonoras que fizera com Gláuber Rocha, Chico de Assis e Joaquim Cardoso. Com este último, uma curiosidade: compôs a canção Bicho da Noite, que vai aparecer, em 2019, no filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles.

 Foto: Wilton Junior/Estadão Conteúdo/Arquivo

Nos anos 1970, lançou o LP Arrebentação e o longa-metragem A Noite do Espantalho, com atuação dos pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Com Aldir Blanc, Jards Macalé e Maurício Tapajós, fundou a Sombrás, sociedade criada para representar os músicos em direitos autorais. Nessa época, enfrenta a censura e lança, com o poeta Thiago de Melo, o show Faz Escuro Mas Eu Canto, que tive o prazer e a honra de assistir, em Brasília.

Nas décadas seguintes, antes de terminar o século XX, fez parcerias com o pessoal do Pasquim, lançou o disco Flicts com canções para a obra do amigo Ziraldo. É dessa época também o LP Juntos, com ninguém menos que Geraldo Vandré. Estavam ali dois expoentes da então chamada música de protesto, ou engajada.

Foto: Divulgação

O século XXI é marcado pelo esquecimento desse extraordinário músico e talentoso compositor. Muito se falou sobre o episódio do violão quebrado no Festival da Record, mas, pouco ou quase nada, sobre a extraordinária carreira desse artista talentoso chamado Sérgio Ricardo. Um gênio.

Morreu aos 88 anos, em junho de 2020. Se estivesse vivo, estaria completando, este ano, 92 anos de idade. Uma pena. Teríamos a oportunidade de referenciá-lo e agradecer por tudo que fez pela cultura brasileira.

Obrigado, Sérgio (Ricardo)! Obrigado, João (Lufti)! 


4 comentários:

  1. Caramba é até vergonha, mas também fiquei conhecendo Sérgio Ricardo só pelo episódio... E quantas trilha sonora, fez trilha sonora pra grandes filmes, o mais recente Bacurau é um filme que me tirou o fôlego.

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  2. Sim, Rodrigo. Foi um grande músico, talentoso e muito criativo. Obrigado pela participação aqui no blog.

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  3. Maravilha, Zeca! Bela historicização você faz sobre o Sérgio Ricardo e a lamentável condição/evento, no qual, em minha opinião, tudo ocorreu como deveria. Que tristeza, o grau de desconhecimento/desrespeito sobre a cultura brasileira e sobre seus reais valores…

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  4. Isso mesmo. Lamentável esse distanciamento de valores tão significativos da nossa cultura. Obrigado pela participação aqui no blog 🙏

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