Transcrevo, abaixo, artigo do amigo e jornalista Moacyr de Oliveira Filho, o popular Moa, muito conhecido pelos seus relevantes serviços prestados ao mundo da cultura, particularmente da música, do samba, e dos desfiles carnavalescos, comandando a sua querida ARUC pelos eixos, ruas e quadras de Brasília. Moa conta um capítulo importante da sua vida ao reencontrar uma companheira de luta dos tempos da ditadura. Chamava-se Amélia, codinome de quem atuava na clandestinidade, e sobre quem o companheiro jornalista jamais teve notícia desde que foi preso pela polícia da ditadura, em maio de 1972. Um texto brilhante que nos emociona do início ao fim. Publicá-lo, neste blog, é uma forma de referenciar todos que lutaram contra o regime militar, reafirmar nossas convicções democráticas e dizer em alto e bom som: a luta continua, companheiro!
Moa, em frente ao DOI-CODI, onde ficou preso em 1972 |
Moacyr de Oliveira Filho
O Alcóolicos Anônimos (AA), que frequentei depois que comecei minha caminhada em busca da sobriedade (o que já faz 22 anos), ensina que o seu Programa dos 12 passos não são diretrizes, mas sugestões que têm ajudado milhões de pessoas a recuperar o controle de suas vidas. Os 12 Passos são mais do que um programa de autoajuda, são um movimento espiritual e emocional que incita mudanças profundas no indivíduo. Cada passo é um caminho para a sobriedade. Desde admitir o poder que o álcool tinha sobre suas vidas até fazer as pazes com aqueles que foram prejudicados, os 12 Passos são fundamentais para uma recuperação duradoura.
Um dos mais importantes, e acredito, mais difíceis de ser dado, é o 9º passo – “Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem”.
Este passo é vital na jornada de
recuperação, pois envolve a prática de corrigir os erros do passado,
solidificando a transformação pessoal. O nono passo exige que se enfrente
as ações passadas e seus impactos, sempre com o cuidado de não causar mais
danos no processo. É um ato de integridade e coragem.
Eu já dei algumas vezes o 9º passo, e agora
tive a oportunidade de dar mais uma vez, depois de 52 anos de espera.
Na noite do dia 8 de maio de 1972,
desci do ônibus na Avenida Santo Amaro, em São Paulo, depois de cobrir um ponto
com Amélia, que dava assistência política para a base universitária do
PCdoB na USP. Nesse ponto, ficou combinado que eu iria dormir aquela noite na
casa dos meus pais, na Rua do Porto, no Itaim Bibi, para me despedir, e, na
manhã seguinte, seria avisado, por telefone, do horário de um novo ponto, no
local de sempre, e entraria na clandestinidade. As quedas de camaradas do
partido, nos últimos dias, punham em risco a minha segurança.
Não deu tempo.
Quando entrei na rua da minha casa fui
capturado pelo DOI-Codi e levado para a temida OBAN, na Rua Tutóia, onde passei
cerca de 7 ou 8 semanas.
Foram quatro dias de tortura – tapas,
socos, telefones, choques (muitos choques), pau-de-arara e cadeira do dragão.
Nos três primeiros dias consegui segurar, até porque tinha pouca coisa a falar
e quase todos os camaradas com quem tinha contato orgânico foram capturados na
mesma noite que eu. Mas no quarto dia, que normalmente é o pior, quando volta a
equipe que te capturou, e a tortura se intensifica, não resisti, acabei cedendo
e junto com outros companheiros que também estavam presos, identificamos as fotos
de Amélia, de quem não sabia o nome verdadeiro, e de Cilon Cunha Brum, o
Comprido, que sabia que não estava mais em São Paulo,
Nunca vou esquecer a cara de um desses
companheiros, o Biafra, que estava comigo na hora que identificamos as
fotos no famoso álbum de fotos dos presos no Congresso da UNE em Ibiúna.
Mesmo sabendo que ter identificado essas
fotos não teria nenhuma consequência imediata porque Amélia e Comprido,
certamente, não estavam mais em São Paulo, esse foi o pior momento que vivi nos
dias em que passei no DOI-Codi. Porque me senti derrotado. Tudo que os
torturadores querem é isso: que você fale alguma coisa. Mesmo que isso não leve
a nenhuma queda. Ao falar, eles te derrotam moralmente.
Essa é a lógica perversa da tortura!
Passei os últimos 52 anos tentando
encontrar Amélia. Para lhe pedir desculpas por minha fraqueza, mesmo
sabendo que isso não levou à sua captura, que só aconteceu meses depois.
Essa semana, por acaso, a encontrei.
Numa conversa despretensiosa com minha
amiga Helenira Lopes, da Fenasamba, que conheço há mais de 5 anos, descobri que
Carmem Calegari Martin, a Amélia, é sua mãe. E, finalmente, nos falamos.
Dei, então, mais uma vez, o 9º passo do
AA, e lhe pedi perdão, pelo dano que, na minha cabeça, posso ter lhe causado,
mesmo sabendo que, na prática, isso não aconteceu.
Foi emocionante poder lhe dizer que ainda
estamos aqui, vencemos a tortura e continuamos na luta!
Parece que esperava esse reencontro
para encerrar esse sofrido ciclo que mudou o rumo da minha vida.
Faltava esse passo!
Muito bom!
ResponderExcluirObrigado
ExcluirNāo é coisa fácil , o conheci no pacotão e as belas mulheres & animação..
ResponderExcluirObrigado pela participação aqui no blog.
ExcluirEu sou a "Amelia", de quem o nosso amigo Moa conta sua busca para dar o 9° passo. Ainda que eu nunca soube do que agora sei, quero deixar aqui minha certeza de que nenhuma consequência trouxe, para minha prisão, ter o Moa me reconhecido naquele momento de tortura, em que o ser humano é relegado à perda total das suas forças emocionais. Valeu, sempre Camarada Moa! Que bom que esse reencontro trouxe tranquilidade para teu coração ❤️!
ResponderExcluirQue bom ter sua participação por aqui. Esse é um capítulo muito interessante e importante da nossa história política. Fico feliz e agradeço muito. Abraço.
ExcluirConheço o Moa dos redutos do samba em Brasília, das memoráveis noites de samba no Feitiço Mineiro sob a batuta do Jorge Ferreira e produção cultural do Jerson Alvim, com participação ilustres sambistas cariocas, sei de sua relação com a Aruc e o quanto é engajado, mas de nem de longe poderia imaginar que viveu o suplício da ditadura. E essa história do reencontro é verdadeiramente emocionante!
ResponderExcluirSim, Helê, essa história é muito rica e emocionante. Obrigado pela sua participação por aqui. Abraço.
ExcluirQuando lemos depoimentos como esse temos o dever de recitar o mantra da defesa incondicional da Democracia Brasileira, dizer em alto e bom tom, com o velho Ulisses Guimarães, “temos nojo e ódio a Ditadura”.
ResponderExcluirBem lembrado, caro Edson, nojo da ditadura. Obrigado pela participação aqui no blog.
ExcluirEmocionada com essa leitura, mas também orgulhosa em ler mensagens de verdadeiros heróis.
ResponderExcluirObrigado pela participação aqui no blog.
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