sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Moa conta reencontro com "Amélia" 52 anos depois da prisão

Transcrevo, abaixo, artigo do amigo e jornalista Moacyr de Oliveira Filho, o popular Moa, muito conhecido pelos seus relevantes serviços prestados ao mundo da cultura, particularmente da música, do samba, e dos desfiles carnavalescos, comandando a sua querida ARUC pelos eixos, ruas e quadras de Brasília. Moa conta um capítulo importante da sua vida ao reencontrar uma companheira de luta dos tempos da ditadura. Chamava-se Amélia, codinome de quem atuava na clandestinidade, e sobre quem o companheiro jornalista jamais teve notícia desde que foi preso pela polícia da ditadura, em maio de 1972. Um texto brilhante que nos emociona do início ao fim. Publicá-lo, neste blog, é uma forma de referenciar todos que lutaram contra o regime militar, reafirmar nossas convicções democráticas e dizer em alto e bom som: a luta continua, companheiro!

Moa, em frente ao DOI-CODI, onde ficou preso em 1972

Mais uma vez, o 9º passo do AA
Moacyr de Oliveira Filho

O Alcóolicos Anônimos (AA), que frequentei depois que comecei minha caminhada em busca da sobriedade (o que já faz 22 anos), ensina que o seu Programa dos 12 passos não são diretrizes, mas sugestões que têm ajudado milhões de pessoas a recuperar o controle de suas vidas. Os 12 Passos são mais do que um programa de autoajuda, são um movimento espiritual e emocional que incita mudanças profundas no indivíduo. Cada passo é um caminho para a sobriedade. Desde admitir o poder que o álcool tinha sobre suas vidas até fazer as pazes com aqueles que foram prejudicados, os 12 Passos são fundamentais para uma recuperação duradoura.

Um dos mais importantes, e acredito, mais difíceis de ser dado, é o 9º passo – “Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem”.

Este passo é vital na jornada de recuperação, pois envolve a prática de corrigir os erros do passado, solidificando a transformação pessoal. O nono passo exige que se enfrente as ações passadas e seus impactos, sempre com o cuidado de não causar mais danos no processo. É um ato de integridade e coragem.

Eu já dei algumas vezes o 9º passo, e agora tive a oportunidade de dar mais uma vez, depois de 52 anos de espera.

Na noite do dia 8 de maio de 1972, desci do ônibus na Avenida Santo Amaro, em São Paulo, depois de cobrir um ponto com Amélia, que dava assistência política para a base universitária do PCdoB na USP. Nesse ponto, ficou combinado que eu iria dormir aquela noite na casa dos meus pais, na Rua do Porto, no Itaim Bibi, para me despedir, e, na manhã seguinte, seria avisado, por telefone, do horário de um novo ponto, no local de sempre, e entraria na clandestinidade. As quedas de camaradas do partido, nos últimos dias, punham em risco a minha segurança.

Não deu tempo.

Quando entrei na rua da minha casa fui capturado pelo DOI-Codi e levado para a temida OBAN, na Rua Tutóia, onde passei cerca de 7 ou 8 semanas.

Foram quatro dias de tortura – tapas, socos, telefones, choques (muitos choques), pau-de-arara e cadeira do dragão. Nos três primeiros dias consegui segurar, até porque tinha pouca coisa a falar e quase todos os camaradas com quem tinha contato orgânico foram capturados na mesma noite que eu. Mas no quarto dia, que normalmente é o pior, quando volta a equipe que te capturou, e a tortura se intensifica, não resisti, acabei cedendo e junto com outros companheiros que também estavam presos, identificamos as fotos de Amélia, de quem não sabia o nome verdadeiro, e de Cilon Cunha Brum, o Comprido, que sabia que não estava mais em São Paulo,

Nunca vou esquecer a cara de um desses companheiros, o Biafra, que estava comigo na hora que identificamos as fotos no famoso álbum de fotos dos presos no Congresso da UNE em Ibiúna.

Mesmo sabendo que ter identificado essas fotos não teria nenhuma consequência imediata porque Amélia e Comprido, certamente, não estavam mais em São Paulo, esse foi o pior momento que vivi nos dias em que passei no DOI-Codi. Porque me senti derrotado. Tudo que os torturadores querem é isso: que você fale alguma coisa. Mesmo que isso não leve a nenhuma queda. Ao falar, eles te derrotam moralmente.

Essa é a lógica perversa da tortura!

Passei os últimos 52 anos tentando encontrar Amélia. Para lhe pedir desculpas por minha fraqueza, mesmo sabendo que isso não levou à sua captura, que só aconteceu meses depois.

Essa semana, por acaso, a encontrei.

Numa conversa despretensiosa com minha amiga Helenira Lopes, da Fenasamba, que conheço há mais de 5 anos, descobri que Carmem Calegari Martin, a Amélia, é sua mãe. E, finalmente, nos falamos.

Dei, então, mais uma vez, o 9º passo do AA, e lhe pedi perdão, pelo dano que, na minha cabeça, posso ter lhe causado, mesmo sabendo que, na prática, isso não aconteceu.

Foi emocionante poder lhe dizer que ainda estamos aqui, vencemos a tortura e continuamos na luta!

Parece que esperava esse reencontro para encerrar esse sofrido ciclo que mudou o rumo da minha vida.

Faltava esse passo! 

12 comentários:

  1. Nāo é coisa fácil , o conheci no pacotão e as belas mulheres & animação..

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  2. Eu sou a "Amelia", de quem o nosso amigo Moa conta sua busca para dar o 9° passo. Ainda que eu nunca soube do que agora sei, quero deixar aqui minha certeza de que nenhuma consequência trouxe, para minha prisão, ter o Moa me reconhecido naquele momento de tortura, em que o ser humano é relegado à perda total das suas forças emocionais. Valeu, sempre Camarada Moa! Que bom que esse reencontro trouxe tranquilidade para teu coração ❤️!

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    1. Que bom ter sua participação por aqui. Esse é um capítulo muito interessante e importante da nossa história política. Fico feliz e agradeço muito. Abraço.

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  3. Conheço o Moa dos redutos do samba em Brasília, das memoráveis noites de samba no Feitiço Mineiro sob a batuta do Jorge Ferreira e produção cultural do Jerson Alvim, com participação ilustres sambistas cariocas, sei de sua relação com a Aruc e o quanto é engajado, mas de nem de longe poderia imaginar que viveu o suplício da ditadura. E essa história do reencontro é verdadeiramente emocionante!

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    1. Sim, Helê, essa história é muito rica e emocionante. Obrigado pela sua participação por aqui. Abraço.

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  4. Quando lemos depoimentos como esse temos o dever de recitar o mantra da defesa incondicional da Democracia Brasileira, dizer em alto e bom tom, com o velho Ulisses Guimarães, “temos nojo e ódio a Ditadura”.

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    1. Bem lembrado, caro Edson, nojo da ditadura. Obrigado pela participação aqui no blog.

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  5. Emocionada com essa leitura, mas também orgulhosa em ler mensagens de verdadeiros heróis.

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