domingo, 4 de dezembro de 2016

Ferreira Gullar morre, mas deixa o prazer do poema entre nós


Os poetas não morrem, jamais. Transitam entre vidas, estágios de existência, ou qualquer outro nome que se queira dar a essa – e a outras – passagem por algum modo de existência. Então, dito isso, Ferreira Gullar, um dos grandes poetas da língua portuguesa, nos deixou hoje, ao morrer no Rio de Janeiro, vítima de complicações pulmonares, depois de ficar 20 dias internado no Hospital Copa D’Or.
Ferreira Gullar nasceu em São Luís do Maranhão, no dia 10 de setembro de 1930. Além de poeta, era crítico de arte, tradutor, ensaísta e colaborou com diversos jornais e revistas. Tinha só 19 anos quando publicou seu primeiro livro: Um pouco acima do chão. Dois anos depois, mudou para o Rio de Janeiro, onde viveu até a manhã deste domingo.


Foi ativista e analista de política. Esteve exilado entre 1971 e 1977, nos anos duros da ditadura militar, em Buenos Aires, onde escreveu sua mais bela obra: Poema sujo. O mais importante reconhecimento da língua portuguesa a um poeta, o Prêmio Camões, foi dado a ele em 2010, pelo conjunto da obra. No ano seguinte, seu livro Em alguma parte alguma ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria poesia, e foi considerado o melhor livro do ano na mesma premiação.
No ano em que foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, Ferreira Gullar nos deu o Prazer do poema, resultado de uma seleção pessoal feita ao longo de três décadas. Uma antologia que reúne poemas que deslumbraram o poeta ao serem lidos. Tenho esse livro sempre perto de mim. Num dos primeiros poemas, estão os versos de Walt Whitman, traduzidos por Ferreira Gullar: “Quando leias isto, eu, que agora sou visível, terei me tornado invisível, enquanto tu serás consistente e visível, e darás realidade a meus poemas, voltando-te para mim”.


Sempre que lermos um dos tantos belos e tocantes poemas de Ferreira Gullar, teremos a prazerosa sensação de tê-lo tornado visível, poderemos fazer de conta que ele estará conosco. Ao ler o poema Traduzir-se, ou ao ouvi-lo na versão musicada por Raimundo Fagner. Mesma sensação ao ouvir Borbulhas de amor, música que ele fez a versão para o português, em parceria com Fagner. Certa vez, disse a uma jornalista que era “o peixe” da música.
Poucas horas antes de morrer pediu aos médicos para que não fosse entubado. Não queria vegetar e prorrogar a existência por mais pouco tempo. E disse para a filha:
“Luciana, tudo isso é inútil. Me leva para Ipanema. Quero entrar no mar e ir embora”.
Sim, como um peixe, a singrar as águas que banham o belo Rio de Janeiro. Tanta grandeza, talvez explique por que os poetas não morrem, jamais.

Aprendizado
Ferreira Gullar

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.






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