domingo, 5 de julho de 2020

Conto resgata a memória de Joaquim Surdo e sua Polina

Rua Araguaia, em Uruaçu, onde morou o personagem Joaquim Surdo

Confesso que me emocionei ao ler o conto Pobres e Dignos, do amigo, poeta, escritor e desembargado Itaney Campos, reproduzido abaixo. Com maestria, ele foi buscar um personagem do nosso mundo de criança na pequena Uruaçu: Joaquim Surdo. Era assim que conhecíamos esse cidadão simples, humilde, furador de cisterna e cavador de covas no cemitério, trabalhador braçal, risonho e simpático.


Joaquim Surdo transita pela minha memória assim como Antônio Seabra, Zequinha, Filomeno França, Maria Doida, Ademar “Roberto Carlos”, e outros que ouvimos as histórias, mas não os conhecemos. Minha mãe Iracema disse que tinha uma foto de Joaquim Surdo comigo no colo. Ele trabalhou muito tempo com meu avô Toinho. Todos esses são figuras interessantes que compõem o cenário de uma pequena cidade, num determinado momento do tempo e da sua história. Segue o texto.

Pobres e dignos
Itaney Campos

Um olhar retrospectivo à infância revela-nos situações inusitadas, algumas hilárias, outras comoventes, personagens inacreditáveis, com aspectos trágicos, se não cômicos. Transitam nessas lembranças figuras humanas curiosas, invulgares, com suas vidinhas simples, cinzentas e sem horizontes.

À época, essas particularidades nos passavam desapercebidas, pois que só a distância temporal nos permite observar e apreciar em suas peculiaridades e idiossincrasias aquele cenário humano, incorporado ao nosso imaginário. É como se disse em relação à montanha, a beleza de  seu perfil só se visualiza à distância. Em contraponto, citando Caetano Veloso, em sua canção “Vaca Profana”, “ de perto ninguém é normal”, também porque, como escreveu esse mesmo compositor, “Narciso acha feio o que não é espelho.” E feio é, na verdade, aquilo que estranhamos.

Ao retornar, em minha memória, à infância, revejo muitos moradores cuja  pobreza não foi capaz de retirar-lhes o senso de dignidade. Ou o lado cômico e divertido. Gostaria de falar aqui primeiro de um casal humilde, de trabalhadores braçais, que vivia em meio a grandes dificuldades, absolutamente desprovido de recursos, protótipos da existência anônima, desimportante, mas que por isso mesmo, ou seja, não era desimportante, merece ser o foco de nossas reminiscências.

Refiro-me a Joaquim Surdo e sua mulher d. Polina. Ele tinha um hábito curioso: nunca abotoava a camisa. Fizesse frio, ardesse o sol ou desabasse chuva, Joaquim estava lá, camisa desfraldada ao vento, sempre de peito aberto, e apoiado em sua grande alpercata de couro. Era totalmente surdo e falava com dificuldade, meio gritado, concluindo suas frases com um pequeno riso... uma forma de se desculpar e conquistar o interlocutor ouvinte.

Joaquim Surdo era como todos o chamavam, sem qualquer constrangimento. Quase como se surdo fosse um sobrenome, ou nome composto de Joaquim.. Trabalhava como coveiro no cemitério municipal e, nas horas de folga, reforçava a renda como furador de cisterna; ela, Polina, uma mulher negra, corpulenta, faladeira e desenvolta, executava serviços domésticos, em casas alheias, em caráter esporádico.

Se não é memória fantasiosa, lembro-me que tinha o estranho hábito de estar sempre descalça, inclusive ao andar pelas ruas poeirentas da cidade. Parecia até promessa. Não se conhecia melhor cortadora de carne de porco. O marido era contratado para sangrar, esfolar o suíno, que se criava nos chiqueiros, nos quintais. E ela era especialista em retalhar  toucinho, preparar linguiça e moer gordura de porco. Eram horas contínuas de tarefa, que ela desempenhava com afinco e de bom grado, a troco, às vezes, das vísceras do animal abatido, seu couro e um pedaço de carne para cozinhar.

Consta que D. Polina não era muito dada a banhos, passava dias distante da bacia. Acho que com razão, devia ser muito trabalhoso equilibrar-se no chão, sobre uma bacia rasa, o corpo exuberante, as pernas grossas, os braços volumosos flutuando pra fora do vasilhame. Mais fácil limpar-se no Ribeirão, ali próximo.

Sem embargo, era benquista nas redondezas, justamente porque comunicativa, prestativa e trabalhadeira, não recusava os serviços, por mais grosseiros que fossem. Moravam quase na ponta da rua Rio Grande do Norte, nas proximidades do Ribeirão Machombombo, que cortava essa artéria urbana, local de banho da meninada. A moradia era uma casa de paredes de adobe, piso de cimento grosso, telhado colonial. Era servida por uma cisterna e uma rústica edícula, como sanitário e banheiro.

Nesses tempos, sem os recursos médicos da modernidade e sem as informações velocíssimas da nova tecnologia, as pessoas pareciam conformar-se com os infortúnios e desditas que sobre elas se abatiam, como se fossem inelutáveis cargas do seu destino. A surdez era  aceita sem reclamos. A cegueira, as doenças, as dificuldades de sobrevivência, as desigualdades sociais, a carência de luz, de água, de alimentos era encarada como um fado imposto pelos deuses. E não se revoltava contra as iniquidades de Deus, pois Ele era só bondade.

E a vida seguia o seu curso. Remansoso ou turbulento. Apesar da evidente pobreza, Polina se dava a um luxo, ou melhor, a uma devoção, a uma promessa, ou coisa que o valha, que chamava a atenção da cidade toda. No dia 13 de dezembro, celebrava com pompa e galhardia, sua devoção a Santa Luzia. O marido aderia à veneração. O afluxo de pessoas, por motivos religiosos, ou com a mera intenção de comer, beber e farrear, foi se intensificando a cada ano.

A festa de Santa Luzia tornou-se evento marcante na cidade. No dia consagrado a santa que teve os olhos arrancados por soldados, e que os teve renovados por milagre divino, os fogos pipocavam já de madrugadinha. Dezenas de foguetes estouravam nos ares, enquanto uma rica mesa de café era servida aos devotos e aos não devotos. Mas antes, todos tinham de participar da reza do terço, puxado por uma afiliada à irmandade do Sagrado Coração de Jesus.

O Vigário não via aquilo com bons olhos, por isso, passava rapidamente por ali, abençoava o povo e se retirava, mas ninguém lamentava a sua ausência. As velhas senhoras, em latim da roça, entoavam cantos gregorianos, jaculatórias e compridas rezas em louvor dos Santos mais conhecidos. Cumprida a obrigação, todos rodeavam eufóricos a grande mesa, em busca de pão de queijo, beiju, bolo de arroz assado na folha de bananeira,  queijo curado, biscoito ferventado, bolo de São Benedito, peta, broa de milho, pamonha, curau, mané pelado, biscoito quebrador, bolo de farinha de trigo, milho cozido e guloseimas como pé de moleque, fatias de rapadura, tijolo doce em pedaços, arroz doce, doces de frutas cristalizados e um ror de quindins de queijo, de mel, de licor e frutas.

Não havia qualquer restrição, muitos enchiam os bolsos da calça e da camisa, visando levar para casa,  mesmo já tendo se fartado por ali.  Mais tarde, por volta de meio dia, renovava-se a longa mesa. Agora eram servidas amplas tigelas de carne cozida, carne assada, bandejas de costelinha suína, galinhada, batata frita, arroz com carne moída, maria Isabel, e tudo quanto é iguaria pensada e imaginada nos melhores sonhos de um sonhador faminto!  Ou famélico!

Quem tivesse disposição, poderia forrar-se a tarde inteira, beber quentão, chá, café e sucos de frutas, e rir às socapas, que nesse tipo de festa o que não faltavam eram os contadores de “causos”  e estórias fabulosas! Piadistas e mentirosos se reuniam no terreiro. Talvez fosse essa a maior festa de devoção da região. Já vinha gente dos municípios vizinhos para certificar-se daquela abundância de rezas e de festa!

Nesse dia, Polina e Joaquim, os anfitriões, circulavam satisfeitos e importantes entre os convivas, vizinhos e forasteiros, como se fossem verdadeiros portentados, enfatiotados com as melhores roupas de brim e algodão. Meses de trabalho exaustivo, frugalidade severa e poupança, até das migalhas, convertiam-se naquele oratório suculento.  Na maioria das casas da nossa pequena cidade comia-se, naquele dia, da mesa farturosa do generoso casal. No final do dia, com a prece coletiva da Ave Maria, encerrava-se a grande festa em louvor a Santa Luzia, a santa padroeira dos olhos! E então o grande véu da noite, salpicado de vagalumes, estendia-se suavemente por sobre a pequena cidade.

4 comentários:

  1. Estou ficando viciada em seus textos! Ñ sei como eles chegaram a mim,se alguém me enviou.Agora eu corro atrás, mas no início eles brotavam sem eu saber como.

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  2. Sou essencialmente urbana, ñ por escolha. Assim,as menções à vida em cidades pequenas ou meios rurais me sequestram,Eu entro nelas e fico saboreando...

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