O que é ser criança em tempo de pandemia e isolamento social? Trancados
em casa ou apartamento, as crianças vivem uma realidade absolutamente diferente
dos tempos considerados “normais”. Perderam o contato com os amiguinhos e amiguinhas,
os brinquedos nos parques, os passeios nas calçadas, debaixo dos blocos e até mesmo
nos pontos turísticos da cidade onde vivem...
O mundo deles nesse momento tão excepcional é, na realidade, o tempo dos
adultos, de ver o mundo pela janela do apartamento ou da varanda de um quintal
de casa para aqueles que têm esse privilégio. Mais que nunca, virou uma grande vantagem morar em casa.
Meu neto Juliano passou a ser um repetidor dos comandos de voz que vêm
das ruas. Anuncia: “vai passano, o caminhão!” e
explica que vai “carregano terra”. Ou então:
“olha o gás, Supergasbrás!”. Mais saborosamente: “Olha a pomonha!”. Antes da
pandemia, ficava no parquinho da quadra socializando com coleguinhas...
Talvez seja um momento interessante para refletirmos um pouco sobre o
universo infantil. Os brinquedos de criança, por exemplo, não são apenas meros
passatempos. Fazem parte também da nossa cultura, tanto que ficam arraigados em
nossas memórias.
Os brinquedos são reminiscências que nos lembram de épocas, fatos
passageiros e mesmo situações marcantes que estão associadas às nossas
histórias. E isso não apenas no Brasil, nem tão pouco somente no interior, mas
também nos grandes centros urbanos, cercados pela modernização, e nos países
que alcançaram alto grau de desenvolvimento tecnológico.
O mundo de hoje está assentado na tecnologia, o que tirou, antes mesmo
da pandemia, as crianças dos brinquedos de rua, tipo peão, bolinhas de gude,
soltar pipas, finca. Sobraram, talvez, as peladas de rua, skates,
andar de bicicleta.
Meus filhos viveram essa transição, com a chegada do computador e
dos vídeos-games; inicialmente, bem simplesinhos. Depois, bastante
sofisticados. Ramiro nasceu em 1983 e o Jordano, em 1989. Ainda brincaram de
bolinhas de gude, as quais o Jojô dizia que eram de vlido.
Já a minha memória dos brinquedos está fortemente associada a pessoas e
às estações do tempo. Jogar bola era prazeroso sob o sol quente daquele
interior goiano, ou mesmo debaixo de um toró daqueles que mal se conseguia
enxergar a bola. Mas, rodar pião, que era um brinquedo maravilhoso, está
associado ao tempo seco e quente. Já a finca – que chamávamos de triângulo por
causa das casinhas que eram desenhadas com essa forma geométrica – só podia ser
praticada no período das chuvas.
Buscar caju nas serras e pequi no mato era uma atividade plenamente
associada a determinada época do ano. Chegávamos a chamar as primeiras chuvas
de “chuva do caju”. Tomar banho nos córregos e nos rios só era possível e
permitido em determinados períodos em que os riscos eram menores.
De noite, as brincadeiras enchiam as ruas e geralmente estavam
associadas ao folclore brasileiro e português, com cantigas de roda e outras
danças. Boa hora para se gastar bastante energia com o Pique de Lata,
Cadeirinha Salve e o Pique Esconde. Descer calçada abaixo em carrinho de rolimã
era adrenalina pura. Em Uruaçu, Goiás, descer a avenida Tocantins de bicicleta,
serpenteando os postes de energia elétrica, dava um frio bom na barriga.
Tinham alguns presentes que eram aguardados ansiosamente, nas festas de
aniversário e no Natal: chuteiras (vejam a cara do garotão na foto), bola de
cobertão, revólver de espoleta e depois, bicicleta. À medida que íamos
crescendo, no entanto, as brincadeiras começavam a perder a pureza e a
inocência, que ficavam depositadas lá na arte de brincar de cozinhadinho com
as meninas...
E tudo isso é universal. Basta ver o vídeo do grupo português Deolinda, postado
abaixo. Outro vídeo maravilhoso sobre o tema é o da canção Bola de Gude, Bola
de Meia, de Fernando Brant e Milton Nascimento. Lembrei também da canção de
João Bosco e de que nossos brinquedos não tinham correlações com o papel machê.
Nem tão pouco tínhamos despertado nossas consciências para questões ecológicas.
O politicamente correto ainda não havia entrado em pauta – até porque as
agressões ao meio físico, se e quando elas existiam, eram realmente infantis e
facilmente absorvidas pelo meio ambiente, até então, preservado.
Assim, de lá para cá, passaram-se
alguns anos. É bom olhar pelo retrovisor e perceber que as nossas brincadeiras
infantis estavam bem associadas ao universo cultural. Não só no Brasil. Também
lá em Portugal, nossa origem. No velho e no novo mundo, ser criança sempre foi
cultura.
Bom dia às crianças da criança que há
em todos nós! E saudemos o dia delas.
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