segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Há uma criança, um menino isolado em algum canto do mundo

O que é ser criança em tempo de pandemia e isolamento social? Trancados em casa ou apartamento, as crianças vivem uma realidade absolutamente diferente dos tempos considerados “normais”. Perderam o contato com os amiguinhos e amiguinhas, os brinquedos nos parques, os passeios nas calçadas, debaixo dos blocos e até mesmo nos pontos turísticos da cidade onde vivem...

O mundo deles nesse momento tão excepcional é, na realidade, o tempo dos adultos, de ver o mundo pela janela do apartamento ou da varanda de um quintal de casa para aqueles que têm esse privilégio. Mais que nunca, virou uma grande vantagem morar em casa.

Meu neto Juliano passou a ser um repetidor dos comandos de voz que vêm das ruas. Anuncia: “vai passano, o caminhão!” e explica que vai “carregano terra”. Ou então: “olha o gás, Supergasbrás!”. Mais saborosamente: “Olha a pomonha!”. Antes da pandemia, ficava no parquinho da quadra socializando com coleguinhas...

Talvez seja um momento interessante para refletirmos um pouco sobre o universo infantil. Os brinquedos de criança, por exemplo, não são apenas meros passatempos. Fazem parte também da nossa cultura, tanto que ficam arraigados em nossas memórias.

Os brinquedos são reminiscências que nos lembram de épocas, fatos passageiros e mesmo situações marcantes que estão associadas às nossas histórias. E isso não apenas no Brasil, nem tão pouco somente no interior, mas também nos grandes centros urbanos, cercados pela modernização, e nos países que alcançaram alto grau de desenvolvimento tecnológico.

O mundo de hoje está assentado na tecnologia, o que tirou, antes mesmo da pandemia, as crianças dos brinquedos de rua, tipo peão, bolinhas de gude, soltar pipas, finca. Sobraram, talvez, as peladas de rua, skates, andar de bicicleta.

Meus filhos viveram essa transição, com a chegada do computador e dos vídeos-games; inicialmente, bem simplesinhos. Depois, bastante sofisticados. Ramiro nasceu em 1983 e o Jordano, em 1989. Ainda brincaram de bolinhas de gude, as quais o Jojô dizia que eram de vlido.

Já a minha memória dos brinquedos está fortemente associada a pessoas e às estações do tempo. Jogar bola era prazeroso sob o sol quente daquele interior goiano, ou mesmo debaixo de um toró daqueles que mal se conseguia enxergar a bola. Mas, rodar pião, que era um brinquedo maravilhoso, está associado ao tempo seco e quente. Já a finca – que chamávamos de triângulo por causa das casinhas que eram desenhadas com essa forma geométrica – só podia ser praticada no período das chuvas.

Buscar caju nas serras e pequi no mato era uma atividade plenamente associada a determinada época do ano. Chegávamos a chamar as primeiras chuvas de “chuva do caju”. Tomar banho nos córregos e nos rios só era possível e permitido em determinados períodos em que os riscos eram menores.

De noite, as brincadeiras enchiam as ruas e geralmente estavam associadas ao folclore brasileiro e português, com cantigas de roda e outras danças. Boa hora para se gastar bastante energia com o Pique de Lata, Cadeirinha Salve e o Pique Esconde. Descer calçada abaixo em carrinho de rolimã era adrenalina pura. Em Uruaçu, Goiás, descer a avenida Tocantins de bicicleta, serpenteando os postes de energia elétrica, dava um frio bom na barriga.

Tinham alguns presentes que eram aguardados ansiosamente, nas festas de aniversário e no Natal: chuteiras (vejam a cara do garotão na foto), bola de cobertão, revólver de espoleta e depois, bicicleta. À medida que íamos crescendo, no entanto, as brincadeiras começavam a perder a pureza e a inocência, que ficavam depositadas lá na arte de brincar de cozinhadinho com as meninas...

E tudo isso é universal. Basta ver o vídeo do grupo português Deolinda, postado abaixo. Outro vídeo maravilhoso sobre o tema é o da canção Bola de Gude, Bola de Meia, de Fernando Brant e Milton Nascimento. Lembrei também da canção de João Bosco e de que nossos brinquedos não tinham correlações com o papel machê. Nem tão pouco tínhamos despertado nossas consciências para questões ecológicas. O politicamente correto ainda não havia entrado em pauta – até porque as agressões ao meio físico, se e quando elas existiam, eram realmente infantis e facilmente absorvidas pelo meio ambiente, até então, preservado.

Assim, de lá para cá, passaram-se alguns anos. É bom olhar pelo retrovisor e perceber que as nossas brincadeiras infantis estavam bem associadas ao universo cultural. Não só no Brasil. Também lá em Portugal, nossa origem. No velho e no novo mundo, ser criança sempre foi cultura.

Bom dia às crianças da criança que há em todos nós! E saudemos o dia delas.


 

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