sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Crônica filosofa sobre a difícil arte de viver

Recebi e compartilho com as leitoras e os leitores deste cantinho, uma interessante crônica do amigo, desembargador, poeta e escritor Itaney Campos (foto). Ele faz uma viagem poética e filosófica sobre as razões de viver em um mundo tão perigoso e cheio de curvas surpreendentes, sombrias e ameaçadoras. Vários escritores e filósofos já teceram longos textos sobre o tema. Esse do Itaney merece entrar para o time das grandes reflexões a respeito dos inúmeros perigos da vida. Como disse o poeta Vinícius de Moraes: “São demais os perigos dessa vida”. Confiram o texto e, se possível, comentem.

Viver é perigoso
Itaney F. Campos

« Viver é um constante rasgar-se e emendar-se”, escreveu João Guimarães Rosa, que acrescentou: “O que a vida requer é coragem”. Todo ser vivente é corajoso, que a vida é luta ferocíssima; corajoso o que prossegue, pelo pedregoso caminho, e aquele que se recusa a continuar e encara de frente a escuridão abissal. Vivemos de tragédia em tragédia, e declinamos de contá-las, que isso seria insuportável. Como diria o poeta, grávidos de dores seguimos, a contemplar um céu de estrelas inconstantes e volúveis, com sua luz de fogo fátuo.

E voltando ao Rosa, o que melhor descreveu o rude e belo sertão brasileiro e o agreste misterioso da alma sertaneja, “o correr da vida embrulha tudo; a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza...”.

Viver é ir se desfazendo de nós próprios, ou melhor, é constatar o desfazimento dos atributos que nos humanizam, a visão que se atenua, a memória que esgota, a audição que se reduz, a energia que se esvanece. Retomamos o caminho do rude pó, regressamos, iluminados ou não, à massa amorfa original, ao caldo primordial. Só o instinto de sobrevivência ainda nos faz rir. E agradecer aos fados. Os mesmos que nos feriram. Agradecemos, talvez prevenidos, talvez temerosos, de outros e maiores golpes. Encaramos os dias à frente, que outra opção não nos resta.

Se olharmos pra trás, como Ayla, de Ló, nos tornamos em sal, ou em pó. Se retroagimos, em retrospectiva, veremos dor, veremos lágrimas, veremos sangue. A melhor mãe do mundo ( e todas o são), minha mãe, mãe de sete filhos, mãe de puro amor, teve amputada a sua perna. Foi levada às muletas. Meu avô, um humanista, um puro de espírito e ecumênico, foi empurrado para a escuridão da cegueira, e para o deserto da desmemória. Minha mulher foi levada para as terras do são nunca aos 49, na força da vida, arrancada dos filhos, pouco mais que adolescentes.

Um conterrâneo idealista e lutador, um defensor das causas mais justas, foi levado à jaula, como se fora uma fera, quando era só um homem de bem, um solidário com os deserdados do mundo. Saiu do cárcere em que o jogaram, para o calvário da doença. No vigor da idade madura, foi ceifado pela indesejada das gentes. Sua vida exemplar, de entrega ao ideal de igualdade, foi à guilhotina da morte, broca no tecido da fruta exuberante. Aloísio, o nome ressoa como saudades.

Vênus Mara foi embarcada no trem da morte quando ainda não vivera sessenta anos. Isso depois de oito anos à beira do precipício, em luta para não sucumbir.

Na tragédia grega, Édipo, conforme profetizado, mata o pai Laio e vem a desposar a própria mãe, Jocasta, rainha de Tebas. Cientes de que se cumprira o oráculo, Jocasta se mata e Édipo fura os próprios olhos, abandona o trono e investe-se da condição de mendigo. Em nossa família, conhecida por sua conduta pacífica, episódios trágicos se perpetraram, alterando radicalmente o destino de muitos. Há algum tempo, em razão de um negócio mal resolvido, a família de um primo foi dizimada, a tiros, após severo confronto no curso da noite.

As tragédias, de tão cotidianas, fazem da vida um inferno, o resto é ilusão. Em cada berço de recém-nascido deveria haver uma placa de advertência, como nos pórticos dos círculos abissais de Dante: “Abandonai toda  esperança, ó vós que entrais!”  Para o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, a vida é insuportável em si mesma. A desgraça é a regra geral.

Em conclusão, nas palavras do pensador, a vida é por natureza um mar de dor à espera da dor maior de todas, a morte, e a nossa razão, que nos dá consciência do tempo, nos faz sofrer em antecipação. O filósofo é taxativo e não deixa margem para esperanças: “ A vida de cada indivíduo vale menos que o oblívio, o nada, a inexistência”.

Sobre o ‘post mortem’ nada posso dizer: nunca morri. 

13 comentários:

  1. Viver é ter a certeza de que irá morrer.

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  2. Beleza e tristeza: fusos da vida.

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  3. Meu poeta de tantas horas está muito sorumbatico. A constatação das agruras da vida nada mais é do que um vigoroso estímulo para seguirmos em frente. A vida é bela. Está no canto dos passarinhos,na musica, na arte(qualquer que seja ela), nos amigos mesmo distantes, na parceira de todas as horas, etc. A morte tem que ser o desfecho de uma vida bem vivida. As poesias de nosso poeta querido sempre foram um estimulo para que a vida continue bela. Precisamos sim é de encontros quando poderemos repetir inúmeras vezes nossos saraus com musica e poesia Abraços

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  4. A vida é isto,nós enchemos de vaidades,de vanglorias mas no fechar das cortinas,alguns saem num repente outros vão se desfazendo do quem tem de mais precioso,da liberdade de ir e vir,da visão, do convívio da família,alguns ficam nas mãos de cuidadores esperando ,sem visão,sem memórias,á espera da tal da maldita morte que se demora tanto.

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  5. Texto verdadeiro e real,viver é aprender a aceitar que a única certeza que podemos ter é que um dia a morte chegará . Parabéns pelo texto e pelo dia dos Pais.

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  6. Parabéns Dr Itanei . Sempre muito agradável ler seus textos. A única certeza que temos é que um dia a morte chegará .

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  7. Muito interessantes todas as considerações, cada participante com suas razões próprias que, afinal, nascem de sua experiência pessoal. Muito bom!

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  8. Uma poética reflexão sobre a vida, sob o prisma da perda. Stª Josefina Bakhita, uma santa africana, dizia que quando fosse ao encontro do Criador ela levaria três malas, uma com o bem realizado em vida, a segunda com o mal que praticou e uma terceira plena dos “por quês”. Se me fosse permitido, eu também apresentaria uma mala de ‘por quês’ ao Criador. Por que motivo inescrutável uma pessoa boa, generosa, solidária, atenciosa é submetida a privações e sofrimentos impiedosos ao final da vida? Por que razão é tirada a vida de uma pessoa cheia de vigor, que ainda tem muito a oferecer e que fará falta irreparável a tanta gente? É tormentoso e angustiante lidar com tais paradoxos (seria um paradoxo?). Ao final, eu sempre concluo que tudo se deve ao grande mistério que é essa nossa passagem terrena, pois apesar de a dor da perda ser lancinante, ao lembrarmos dos nossos amados que já partiram, os nossos sentimento são sempre de emoção, saudade e alegria pelo tempo compartilhado. (Stela Márcia Freitas).

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