Brasília
tem dias lindos, manhãs que são um verdadeiro sonho. No inverno, então, as
manhãs da cidade são cheias de peculiaridades e nos despertam sentimentos de
alegria e contentamento. O amigo Arnaldo Siqueira, delegado de polícia
aposentado e mestre em Direito Penal, teve a capacidade e a sensibilidade de captar
e mostrar tudo isso numa bela crônica.
Uma
Manhã de Inverno em Brasília retrata todas as belezas que a natureza nos
oferece nas manhãs de Brasília, nos meses de Inverno. Num visão bastante poética,
o autor faz uma expressa declaração de amo à cidade. Não é só isso. Aborda o
lado social que toda grande cidade vive e assiste nas ruas e calçadas
diariamente. Faz tudo com leveza, arte e zelo para com as palavras e as frases.
A
cena humana comove e envolve o leitor, porque recorrente em nosso meio. Cotidianamente, só um escritor se preocupa em observá-la com empatia. A discussão
entre as mulheres sobre a conveniência ou não de dar esmolas ou agradar os
pedintes também se reveste de grande verossimilhança e retrata em um flash a
nossa triste realidade social, cheia de injustiças e desigualdades.
Quem é de Brasília vai se identificar fácil e rapidamente com a crônica. Leitores de outras regiões, terão aqui a oportunidade de ver pintada a paisagem da capital da República em precisas e belas pinceladas.
O
conto é de notável sensibilidade. Muito bem desenvolvido, conseguindo retirar
do cotidiano um registro sensível da vida da cidade.
Apreciem.
É uma boa leitura para um dia de domingo.
Uma Manhã
de Inverno
Arnaldo Siqueira
João
Alberto acordou, e ainda sonolento, levantou o queixo, olhando por cima da
testa conseguiu alcançar com os olhos o relógio grande e redondo que ficava pendurado
na parede do quarto, acima da cabeceira da cama, que marcava naquele instante
08h50min. Deixava o relógio nessa posição de propósito, pois nos dias que não
tivesse compromisso não queria saber de hora.
Lembrou
que chegara o dia de se mudar para o exterior, onde teria que morar, pelo menos,
durante três anos. Com o pensamento veio um fio de ansiedade no estômago.
Respirou fundo e deu graças a Deus pela oportunidade. Pensou que poucos têm a
chance de se especializar em outro país e depois decidir se querem continuar morando
lá ou retornar à origem. Olhou as malas prontas e a passagem e fez as contas
das horas que lhe restavam antes do embarque. – Nossa, tem muito tempo! O Voo
será só às três da tarde.
Tomou banho, barbeou-se e se vestiu. Foi
até a janela. Abriu as cortinas e avistou os galhos secos do Ipê, cobertos por
uma manta de plumas roxas, desafiando a beleza do céu azul de Brasília. Tinham
como companhia uma leve poeira vermelha com pelugem acinzentada da grama
queimada pelo sol, transportadas pelo vento frio e seco. Era inverno, sem
dúvida.
O
João Alberto, como bom candango que era, sabia que os ipês roxos chegam junto
com o inverno, acompanhados do frio, do vento e de uma atmosfera quase lúgubre,
que causa nos moradores de Brasília um misto de alegria e tristeza; algo
inexplicável para quem desconhece o clima e a beleza do cerrado: ao mesmo tempo
em que se enxerga o céu mais bonito do mundo, além da lindeza dos ipês, vê-se
também a seca que judia e mata o verde.
João Alberto resolveu descer do seu
apartamento, pegar o carro e ir tomar café na torteria, a cerca de 1km. Entrou,
sentou-se e, entre um gole e outro de café, assistia, além do espetáculo dos ipês
roxos, o balé da poeira misturada com a grama queimada a formar um arremedo de
bailarina, tentando se levantar e dar uma pirueta, sem, no entanto, conseguir porque
o vento frio e seco a desintegrava logo que saía do chão.
Sabia
ele que essa era a abertura do espetáculo que se desenvolve em quatro partes ao
longo do inverno de Brasília, pois, quem tem a sorte de viver e apreciar a beleza dessa cidade sabe
que quando murcham os ipês roxos, florescem os amarelos, deixando a cidade
parecida com uma revoada de borboletas amarelas, que encantam tanto quanto a
aparente chuva de flocos de neve trazida
pelos ipês brancos, que suavizam a seca
do cerrado, e que só murcham quando começa a última parte e o fim do inverno
marcado pelos ipês rosas.
João
Alberto, apesar de absorto pelos pensamentos que surgiam dessa contemplação,
teve sua atenção desviada para outro tipo de beleza, presente em todas as
estações do ano. Percebeu uma silhueta
feminina que passava por trás de si. Correu os olhos sem virar a cabeça e fixou
o olhar em uma mulher elegante, medindo 1,70m de altura, cabelos loiros e
longos, tão cheios que pareciam uma cachoeira dourada, desaguando em um
volumoso quadril arredondado coberto por uma saia preta de seda acetinada, que
permitia perceber cada movimento delicado que ela fazia. A saia, um pouco acima do joelho, deixava à
mostra o torneado das belas pernas, vestidas em meias finas, molduradas por um
belo par de sapatos pretos de saltos altos, com um pequeno detalhe dourado nos
bicos, como se duas minúsculas borboletas estivessem ali pousadas.
−
João! Oi! – Desculpe-me, estava pensando no tanto de beleza que tem nossa
cidade – disse João Alberto à garçonete
Brenda, que estava à sua frente com um
leve sorriso. – Nada não −
disse ela − Só para saber se deseja mais alguma
coisa ou se hoje vai ser apenas a tartelete de morango e o expresso. – Ah,
muito obrigado − respondeu ele
educadamente e, também com um sorriso, disse: −
Vou tomar mais um expresso.
Desde
que João Alberto começou a frequentar a Cafeteria sempre foi atendido pela
Brenda, isso porque sempre manteve o hábito de se sentar no mesmo lugar, de frente para a rua de onde
podia observar toda movimentação dentro e fora do ambiente, e nessa parte da
cafeteria, que continha cerca vinte pequenas mesas, com duas cadeiras em cada,
colocadas encostadas na parede de vidro
ao redor do grande balcão em L, que dividia o ambiente de
aproximadamente cem metros quadrados, era Brenda que atendia, apesar de ele
conhecer pelo nome todos que ali trabalhavam.
Quando Brenda deu as costas, João Alberto percebeu
que a elegante senhora havia sentado a duas mesas de distância, de frente para
ele, porém a atenção dela era voltada
totalmente para a tela do seu telefone celular, o que proporcionou ao João
Alberto observá-la mais detidamente, pois já tinha dado uma rápida espiadela.
Nesse momento, Joana, outra garçonete, colocava à mesa dela um croissant e um
cafezinho. Ela olhou para a garçonete deu um breve sorriso em agradecimento. O
sorriso, apesar de rápido, revelava uma pessoa alegre. Tinha os olhos negros
brilhando, entre cílios grandes, cercados por uma maquiagem discreta, que os
molduravam bem. Pareciam jabuticabas destacadas no rosto de pele branca, que
contrastavam com os cabelos dourados, sem anular, contudo, o discreto batom que
destacava a boca, parecendo um morango bem desenhado. No braço esquerdo, um pequeno relógio
quadrado de fundo branco com uma pulseira prateada bem trabalhada em elos;
quase passando despercebido em vista da grossa aliança de ouro no dedo anelar
esquerdo, cercada por dois aparadores de ouro.
João Alberto também agradeceu o seu segundo café que Brenda acabara de deixar em sua mesa. Colocou meio sachê de açúcar e, vagarosamente, misturou o açúcar no café e depois passou a tomá-lo, sentindo o prazer de quem sabe apreciar as belezas que podem ser extraídas de pequenos detalhes. Olhou para fora e, por entre as plantas que dividiam a calçada da torteria, viu o movimento dos carros e das pessoas que subiam e desciam a Quadra. João Alberto observou que ali na calçada havia um menino de aproximadamente doze anos de idade estirando a mão esquerda para todos que por ele passavam, repetindo a mesma frase: − Uma ajuda para comprar um salgadinho! − Ninguém olhava para ele. Era como se ele não existisse. Foram várias e várias pessoas. João Alberto olhou mais atentamente para a mão direita do menino para saber se tinha alguma deficiência ou se o garoto era realmente canhoto, percebeu que as mãos dele eram aparentemente normais, mas que ele estava segurando algo com a mão direita e, por isso estendia a esquerda para pedir. Resolveu intervir na cena e falou: − Ei, menino! O garoto olhou para ele assustado, como sem entender por que aquele homem brigaria com ele, respondeu: − Sim, senhor! − Vem cá – disse João Alberto. Ele se aproximou desconfiado, com a cabeça meio torta para a direita, olhava ao mesmo tempo com um olho para o chão e com o outro para o homem; que até então ele não sabia o que queria.
João Alberto também agradeceu o seu segundo café que Brenda acabara de deixar em sua mesa. Colocou meio sachê de açúcar e, vagarosamente, misturou o açúcar no café e depois passou a tomá-lo, sentindo o prazer de quem sabe apreciar as belezas que podem ser extraídas de pequenos detalhes. Olhou para fora e, por entre as plantas que dividiam a calçada da torteria, viu o movimento dos carros e das pessoas que subiam e desciam a Quadra. João Alberto observou que ali na calçada havia um menino de aproximadamente doze anos de idade estirando a mão esquerda para todos que por ele passavam, repetindo a mesma frase: − Uma ajuda para comprar um salgadinho! − Ninguém olhava para ele. Era como se ele não existisse. Foram várias e várias pessoas. João Alberto olhou mais atentamente para a mão direita do menino para saber se tinha alguma deficiência ou se o garoto era realmente canhoto, percebeu que as mãos dele eram aparentemente normais, mas que ele estava segurando algo com a mão direita e, por isso estendia a esquerda para pedir. Resolveu intervir na cena e falou: − Ei, menino! O garoto olhou para ele assustado, como sem entender por que aquele homem brigaria com ele, respondeu: − Sim, senhor! − Vem cá – disse João Alberto. Ele se aproximou desconfiado, com a cabeça meio torta para a direita, olhava ao mesmo tempo com um olho para o chão e com o outro para o homem; que até então ele não sabia o que queria.
O
menino não aparentava estar desnutrido, mas dava sinal que não recebia cuidados
há algum tempo; apesar de seus cabelos aparentarem lisos, estavam duros feito couro
curtido e dava mostras que não via água há um bom tempo, o que era confirmado
pelas manchas de sujeiras no moletom azul e na blusa cinza, que estava sobre
uma camisa grande que saía pelas mangas e abaixo da cintura, parecendo que era
branca originalmente; calçava sandálias, de cor indefinida. Abriu, então, um
sorriso quando ouviu de João Alberto a seguinte
frase: −
Pede o que você quiser para aquela moça, acenando à garçonete. – É mesmo, moço?!
Posso pedir refrigerante? – Pode. Nesse momento, João Alberto fez um sinal para
a garçonete para atendê-lo.
Esse
gesto do João Alberto foi suficiente para abrir uma discussão entre duas
senhoras idosas que estavam saboreando tortas. A mais exaltada, olhando de
soslaio para ele disse: −
São essas condutas que incentivam a mendicância. − Eu não dou. Não adianta pedir. − Eu também não dou
esmolas, mas não me importo se alguém dá. – É, mas as consequências recaem
sobre todo mundo. Se ninguém desse, eles não sairiam perambulando pela rua, cientes
de que não ganhariam nada.
João
Alberto, que já conhecia bem essa ladainha e sabia que esse não é problema
apenas dessa cidade, porque tem mendigos na Champs Élysees, na Broadway, e,
onde quer que se vá. Fez sinal para a garçonete trazer a conta. Enquanto
esperava, o menino passou por ele, segurando com a metade da mão direita uma
latinha de refrigerante e com a outra metade da mão algumas moedas. Na mão esquerda trazia, em um saquinho de
papel, um salgadinho. E, agora com mais intimidade, olhou para João Alberto e
disse: −
‘brigado,
moço! −,
saindo e descendo a Quadra sem preocupação.
João Alberto levantou-se, agradeceu à Brenda e saiu. Tomou o rumo do
eixo W e ao passar por baixo da tesourinha, virou à esquerda e pegou o eixão
rumo à Asa Sul, e se não fosse ele candango, teria achado estranhos dois
fenômenos da natureza que presenciou
naquele exato momento que alcançou a pista central. Era final do mês de junho e
estava caindo uma leve chuva em uma parte da Asa Norte. Nessa época, é raro
chover em Brasília mas ocorria uma
peculiaridade que sempre impressiona até mesmo aqueles que vivem na Capital: a chuva caía só nas quadras
duzentos enquanto fazia sol nas quadras cem. Ele dirigia entre o sol e a chuva
e o que separava a área chuvosa da ensolarada era uma distância de cerca de quinhentos
metros. Maravilhoso! Os carros que
transitavam no eixo L, rumo ao norte eram obrigados a ligar os limpadores de para-brisas,
ao passo que aqueles que seguiam pelo eixo W, rumo ao sul, desfrutavam do sol.
João
Alberto seguiu dirigindo, e apesar da velocidade permitida ser de 80 km/h, ele
transitava na faixa direita mais devagar para curtir seu restinho de manhã e
para apreciar uma beleza que não sabia se teria oportunidade de tornar a ver.
Estava cercado de ipês roxos com duas tonalidades do lado direito, onde havia sol, as flores se
tornavam reluzentes; e do outro lado, onde chovia, elas mostravam um roxo, escurecido
pelas gotículas de água que caíam. Parou no acostamento e pensou como era
possível ele ter passado sua vida ali e não ter visto a cidade como estava
vendo naquela manhã. Fechou os olhos e foi
revendo e fotografando na mente cada detalhe desde a hora que acordou e só
abriu os olhos ao ouvir o som das sirenes dos batedores que escoltavam um
comboio de carros pretos que passava por ali. Pensou se não seria um mal
presságio toda aquela observação mas riu e falou consigo:
− Que mal presságio
que nada, isso é saudade antecipada.
Maravilhosa a crônica. Realmente, somente alguém com muita sensibilidade e amor pela nossa cidade poderia retratá-la com quanta emoção. Parabéns
ResponderExcluirQue linda crônica. Somente uma pessoa com muita sensibilidade e amor pela nossa cidade poderia retratá-la com tanto carinho. Fantástico.
ResponderExcluir