sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Crônica resgata um tempo e um lugar de muitas saudades

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Reminiscências, lembranças, alma aquecida e mente cheia de contentamento. Foi assim que me senti ao ler a crônica abaixo, do amigo, poeta, escritor, desembargador e membro da Academia de Letras Goiana, Itaney Francisco Campos. Viajei no tempo de volta para Uruaçu (GO), a nossa terrinha, aquela cidade querida encravada no norte goiano, hoje à beira do lago Serra da Mesa. Resolvi publicá-la aqui no blog para compartilhar esse deleite com as leitoras e leitores. Espero que gostem. Beijos no coração.


Um Riacho Fluindo de Saudades
Itaney F. Campos

Nasci e vivi a infância e adolescência na pequena e bucólica cidade de Uruaçu, no norte goiano. Estão nela as minhas referências primordiais, meu vínculo indissolúvel com o interior, os sonhos que carreguei ao longo da vida e uma saudade incontornável, ainda hoje palpitante na alma. O canto da seriema, no bosque, o latido noturno de um cachorro, o ciciar dos grilos, o coaxar de sapos, o repicar de sinos na aurora, a imagem do riacho fluindo…tudo isso me faz regressar, não importa onde eu esteja, à minha terra natal. Um profundo sentimento de nostalgia transporta-me, no tempo e no espaço, para a pequena cidade goiana fundada por meus avós. Ali, no meio da cidade, banhando os terrenos em que se fixaram os meus antepassados, no início do século passado, corria, como ainda corre, em calma e em meio a pedras, o Ribeirão Machambombo. Nele banhei-me, em folguedos, no poço da passagem, vezes incontáveis.

Na minha cabeça de menino, o Machambombo delimitava a coletividade urbana: do lado de cá, os goianos, os da terra, os fundadores da cidade, a própria cidade, com seus largos arborizados e suas ruas amigas. Do lado de lá, os novatos, os chegantes, com seus estranhos costumes e seu sotaque regional - nordestino - , suas ruas esparsas e inóspitas. Em suma, região de gente sem raiz e, mais, gente humilde, imigrantes. Lá não era exatamente a cidade, mas uma extensão dela. Tudo de bom estava aquém do riacho, do Ribeirão dos nossos avós que as suas margens ergueram suas casas e sua igrejinha. Estavam do lado de cá a igreja catedral, a capela fundadora de Santana, o colégio, o comércio diário, o campo de futebol, os amigos e parentes. Do outro lado, o comércio rústico, as oficinas mecânicas, o comércio ambulante.

Em tempo que não sei precisar e por razões obscuras então para mim, o panorama foi se modificando. Sem mais nem menos, beneficiaram as ruas com meio fio, lá do outro lado, instalaram-se vários comércios, ampliou-se a área urbana, construiu-se a igreja S. Sebastião e abriu-se uma escola pública. Nosso lado começou a ficar pra trás. O pior é que levaram para o lado de lá o cinema, então do Joventino, com os filmes de Randolph Scott, Zorro e Tarzan, e ainda apareceu por aqueles lados uma mocinha que fez meu coração disparar. Isso me levou a reformular os conceitos. Do lado de lá, diga-se a verdade, estava o novo, o moderno, os ventos do progresso e as melhores diversões, tirado o poço, a passagem, no Machambombo, em que nos banhávamos, tentando nos refrescar, um grupo de garotos, às vezes escondidos das mães. Eu estava com treze, catorze anos. 

Por essa quadra, ouvi comentários de um movimento do Exército, uma revolução, para tirar o presidente da República, João Goulart, que tinha fazenda na nossa região, e tiraram, o que achei lamentável, um desaforo. Afinal, ele, o senhor presidente da República, era uma autoridade e amigo de um pessoal de Uruaçu. Certa feita, ele pôs a mão em minha cabeça de menino e cumprimentou de forma afável, paternal mesmo. Um homem bondoso. Nesse mesmo período, algum tempo depois, instalou-se em nossa cidade a loja A Revolução. Achei que era do pessoal inimigo do Jango Goulart, e fiquei aborrecido com a abertura dessa loja deles em nossa cidade. Para mim, era “persona non grata”. Apesar de que eu achava que um presidente da República não podia mancar, e Jango mancava, levemente mas mancava, o que me espantou muito, quando vi.

Nessa época, tínhamos tia Diva, quase uma segunda mãe, a trupe de primos, quase irmãos; Tonico, em sua tenda de ferreiro, vivo até hoje; as tias Dica e Olímpia, a bondade em forma de gente; o dentista Luiz Gomes, meu padrinho; Laura Walgenbach, minha madrinha e contraparente, casada com um alemão cheio de ironia, o Gustavim. E ainda Zequinha, o rei da gaita. Tínhamos papai, mamãe, passeios na tapera e arroz com pequi, prato preferido lá em casa. No quintal, a babosa, o brinco de princesa e a flor de bogari, rescendendo seu perfume varanda adentro. Tudo vai se desfazendo nas névoas do tempo. Só o Machambombo continua lá, a correr no seu leito estreito, de pedras, riacho bom para lavadeiras. Na sua correnteza, nossos sonhos dissolutos, nossa infância dissipada, um murmúrio contínuo de rio manso, a proclamar os sons da saudade.


8 comentários:

  1. Nosso poeta, escritor Itaney nos faz recordar com delicadeza nossa infância em Uruaçu lembrando detalhes guardados na memória agora podemos compartilhar.

    Obrigada Zeca em postar no seu Blog.

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  2. Muito bom, muito legal poder olhar Uruaçu pelo olhar de outra pessoa, em tempo que parecia poesia... Hoje a cidade está passando por uma dimensão de progresso, que parece esquecer o que é bonito e necessário a alma.

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    1. Também tenho essa visão do texto, Rodrigo. Obrigado pela participação aqui no blog.

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    2. Me situei na turma dos chegantes do ladp se lá do Machombombo. O meu avô chefou com sua familia pelos idoa de 1.952, una veram se pau de arara e outros no lombo de mais de 200 jumentos, tambem retorantes nordestinos.

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    3. Adorei esse comentário. Meu avô Toinho também veio do Nordeste em lombo de burro, um pouco antes, na década de 1940. Pena que não apareceu o seu nome no comentário. Fiquei curioso em saber mais detalhes da pessoa e da saga da família. Grande abraço e obrigado pela participação.

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