De pai pra filho, desde 1912. É o que diz o verso de uma canção de Luiz Gonzaga, o velho Lua, fazendo uma referência a seu pai Januário, exímio tocador de pé-de-bode, a sanfona de oito baixos. O mesmo poderia ter dito Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha, se quisesse fazer referência ao que herdou do avô e do pai: muito talento musical, que foi sendo passado de pai pra filho e cada um soube impor seu estilo próprio, com extraordinária personalidade.
Talento de pai pra filho, desde 1912 |
O moleque Gonzaguinha morreu há vinte anos, mais exatamente no dia 9 de abril de 1991, num estúpido acidente automobilístico em uma estrada do interior do Paraná, antes de completar 46 anos de idade. Filho de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, e Odaléia Guedes dos Santos, cantora e bailarina do coro de Ataulfo Alves, que morreu muito nova, de tuberculose, Gonzaguinha tinha muito para quem puxar no plano musical.
Pra completar e ampliar essa formação, Gonzaguinha foi criado no morro do São Carlos, no bairro do Estácio, onde freqüentava escola e rodas de samba. Adotado pelo padrinho, o baiano e violonista Xavier, e pela madrinha Dina, que era filha de portugueses e adorava ouvir música em casa, começou muito cedo no universo da música, tanto que não se lembrava quando começou a tocar violão e a compor, como chegou a contar em entrevista.
Tinha muita personalidade e uma sensibilidade à flor da pele, o que explica seus versos cortantes, encantadores, e sempre muito voltados para o cotidiano, o sofrimento do ser humano e engajados. Disse certa vez, em entrevista ao Jornal do Brasil: “Toda música é política. Se ela não se coloca nem contra nem a favor, ela já é, por sua inércia, a favor. O que lhe dá a dupla característica de alienada e alienante”.
Gravou, em 1973, a canção Comportamento Geral (ouça a seguir), que vendeu só naquele ano 20 mil cópias. Era um protesto contra os anos duros da ditadura militar, vista de uma forma poética e muito critica: “Você deve aprender a baixar a cabeça/ E dizer sempre muito obrigado/ São palavras que ainda te deixam dizer/ Por ser homem bem disciplinado”. A partir daí, a censura não lhe deu sossego.
Fez canções maravilhosas, como O Que É, O Que É?, que ele mesmo gravou numa interpretação vibrante, mas que recebeu uma roupagem diferente e belíssima na voz de Zizi Possi, com um arranjo impecável (ouça abaixo).
Gonzaguinha foi influenciado por boleros, samba do morro, gafieira, música nordestina de seu pai, canções portuguesas, ouvidas por sua mãe, a bossa nova e o tropicalismo. Sua música Tá Certo, Doutor, que tem uma letra interessante, foi gravada pelo grupo vocal MPB 4, numa interpretação antológica (ouça abaixo).
Gonzaguinha é uma página importante da música popular brasileira e teria nos proporcionado muitas outras alegrias se ainda estivesse vivo. Tinha prazer pela vida e uma visão humanística acentuada. Gonzaguinha teria 66 anos de idade e, com certeza, não teria perdido seu espírito de moleque do morro de São Carlos.
Tá certo, doutor
Gonzaguinha
Dá licença, dá licença, ó o menino com meningite aqui, dá licença,
Afasta aí
Dá licença, dá licença, dá licença, dá licença
É um atentado à moral e aos bons costumes vigentes, um certo inconveniente
Deixar este homem doente perambular pelas ruas a cometer tais falcatruas
Incompatível com os estatutos dessa gafieira,
Dançar dessa maneira, desrespeitando o salão, desfigurando o padrão
Fere as normas do edital de formação da nossa firma atual
Esse homem está enfermo, nem precisa exame sério, seu mal está constatado
Depressa, põe no hospital!
Deve ficar bem isolado, em quarto bem fechado
Sem portas ou janelas, pois pode ser contagiante
Dieta mais que rigorosa, medicação bem adequada e muita observação
Pra que não haja agravantes
Em tempo hábil deve ir até o centro de controle para testar sua boa condição,
Se está fechada a ferida
Seu caso deve ser anotado, o seu mal ser vigiado e lhe requer muita atenção
Seu caso deve ser anotado, o seu mal ser vigiado e lhe requer muita atenção
Pois traz perigo à nossa vida
Não dou amparo, nem guarida
Dou guaraná, com pesticida
Pra acalmar minha dormida
Não tô afim de pôr em risco a minha condição
Afasta aí
Dá licença, dá licença, dá licença, dá licença
É um atentado à moral e aos bons costumes vigentes, um certo inconveniente
Deixar este homem doente perambular pelas ruas a cometer tais falcatruas
Incompatível com os estatutos dessa gafieira,
Dançar dessa maneira, desrespeitando o salão, desfigurando o padrão
Fere as normas do edital de formação da nossa firma atual
Esse homem está enfermo, nem precisa exame sério, seu mal está constatado
Depressa, põe no hospital!
Deve ficar bem isolado, em quarto bem fechado
Sem portas ou janelas, pois pode ser contagiante
Dieta mais que rigorosa, medicação bem adequada e muita observação
Pra que não haja agravantes
Em tempo hábil deve ir até o centro de controle para testar sua boa condição,
Se está fechada a ferida
Seu caso deve ser anotado, o seu mal ser vigiado e lhe requer muita atenção
Seu caso deve ser anotado, o seu mal ser vigiado e lhe requer muita atenção
Pois traz perigo à nossa vida
Não dou amparo, nem guarida
Dou guaraná, com pesticida
Pra acalmar minha dormida
Não tô afim de pôr em risco a minha condição
Tinha é que prender esse homem...
O que nos consola em tais personalidades é que seu legado alcança várias gerações, conferindo-lhes imortalidade na forma mais transcedente que existe: a arte!! Parabéns pelo texto, pela iniciativa e pela sensibilidade!
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