Na verdade, Alvarenga sempre foi o
mesmo nessa dupla que é uma das mais tradicionais do universo caipira. Ranchinho foram três. O primeiro deles
foi Diésis dos Anjos Gaia, que cantou com o parceiro de 1933 a 1938. Depois, em
meio a alguns intervalos, estiveram junto até 1965. O “segundo Ranchinho” foi
Delamare de Abreu, que era irmão de Alvarenga por parte de mãe. Cantaram juntos
somente por dois meses na década de 1950, num daqueles intervalos do Ranchinho I. Em 1965, juntou-se a
Alvarenga o companheiro que passaria a ser conhecido como “Ranchinho da Viola”,
e que tinha o nome de batismo de Homero de Souza Campos. Os dois estiveram
juntos até a morte de Alvarenga, em 1978.
Murilo Alvarenga e “seus Ranchinhos”
chegaram a gravar 30 LPs e 600 discos em 78 rotações por minutos (RPM), em 50
anos de carreira. Alvarenga tinha um viés político de dar inveja nos
manifestantes dos dias de hoje. Na primeira década da carreira, os dois foram
presos várias vezes pela polícia do presidente Getúlio Vargas, a quem
incomodavam sistematicamente com suas paródias. Mas também faziam músicas
ironizando Hitler e Mussolini e políticos locais de todos os escalões. Uma
delas era genial. Tinha o título de Liga dos Bichos e tornou-se imortal para
quem conhece um pouco da história política brasileira:
“Os bicho têm sociedade/ adonde têm protetor/ na família
do seu Galo/ tem muito Pinto doutor/ já vi Leitão professor/ vi Aranha de
talento/ mas o que me deixou besta/ foi ver Cavalo sargento/ também vi Coeio
fardado/ oficiar de longo curso/ e na crasse dos artistas/ tenho visto muito
Urso/ pra chegar a capitão/ a gente quase se mata/ e os bicho sobe na vida/ tem
até major Barata/ da maneira que vai indo/ tô vendo que não demora/ os burro
monta na gente”.
Alvarenga, muito antes de Chico
Buarque de Holanda, escreveu uma letra genial, usando e abusando das palavras
proparoxítonas, que virou a canção O
Drama de Angélica e pode ser ouvida no áudio abaixo – confiram a letra e
vejam se não é de matar de inveja o nosso Chico, autor da bela Construção. Pode-se perceber também,
nessa gravação, o quanto Alvarenga tinha voz maravilhosa, que, aliás, foi herdada pelo
seu filho Murilo Alvarenga Júnior. No ano passado, ele esteve no programa do
Rolando Boldrin, interpretando a maravilhosa Coração de Violeiro (ouçam e vejam abaixo).
Alvarenga foi genial no universo da
música popular, assim como Zé Fortuna e Raul Torres, o Bico Doce. Mas aí é
outra história. Falo depois.
O Drama de Angélica
Alvarenga e Ranchinho
Ouve meu
cântico quase sem ritmo
Que a voz de um tísico magro esquelético...
Poesia épica em forma esdrúxula
Feita sem métrica com rima rápida...
Que a voz de um tísico magro esquelético...
Poesia épica em forma esdrúxula
Feita sem métrica com rima rápida...
Amei
Angélica mulher anêmica
De cores pálidas e gestos tímidos...
Era maligna e tinha ímpetos
De fazer cócegas no meu esôfago...
De cores pálidas e gestos tímidos...
Era maligna e tinha ímpetos
De fazer cócegas no meu esôfago...
Em noite
frígida fomos ao Lírico
Ouvir o músico pianista célebre...
Soprava o zéfiro ventinho úmido
Então Angélica ficou asmática...
Ouvir o músico pianista célebre...
Soprava o zéfiro ventinho úmido
Então Angélica ficou asmática...
Fomos ao
médico de muita clínica
Com muita prática e preço módico...
Depois do inquérito descobre o clínico
O mal atávico mal sifilítico...
Com muita prática e preço módico...
Depois do inquérito descobre o clínico
O mal atávico mal sifilítico...
Mandou-me
célere comprar noz vômica
E ácido cítrico para o seu fígado...
O farmacêutico mocinho estúpido
Errou na fórmula fez despropósito...
E ácido cítrico para o seu fígado...
O farmacêutico mocinho estúpido
Errou na fórmula fez despropósito...
Não tendo
escrúpulo deu-me sem rótulo
Ácido fênico e ácido prússico...
Corri mui lépido mais de um quilômetro
Num bonde elétrico de força múltipla...
Ácido fênico e ácido prússico...
Corri mui lépido mais de um quilômetro
Num bonde elétrico de força múltipla...
O dia
cálido deixou-me tépido
Achei Angélica já toda trêmula...
A terapêutica dose alopática
Lhe dei em xícara de ferro ágate...
Achei Angélica já toda trêmula...
A terapêutica dose alopática
Lhe dei em xícara de ferro ágate...
Tomou num
folego triste e bucólica
Esta estrambólica droga fatídica...
Caiu no esôfago deixou-a lívida
Dando-lhe cólica e morte trágica...
Esta estrambólica droga fatídica...
Caiu no esôfago deixou-a lívida
Dando-lhe cólica e morte trágica...
O pai de
Angélica chefe do tráfego
Homem carnívoro ficou perplexo...
Por ser estrábico usava óculos:
Um vidro côncavo o outro convexo...
Homem carnívoro ficou perplexo...
Por ser estrábico usava óculos:
Um vidro côncavo o outro convexo...
Morreu
Angélica de um modo lúgubre
Moléstia crônica levou-a ao túmulo...
Moléstia crônica levou-a ao túmulo...
Foi feita
a autópsia todos os médicos
Foram unânimes no diagnóstico...
Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico
Todo de mármore da cor do ébano...
Foram unânimes no diagnóstico...
Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico
Todo de mármore da cor do ébano...
E sobre o
túmulo uma estatística
Coisa metódica como Os Lusíadas...
E numa lápide paralelepípedo
Pus esse dístico terno e simbólico:
Coisa metódica como Os Lusíadas...
E numa lápide paralelepípedo
Pus esse dístico terno e simbólico:
"Cá jaz Angélica
Moça hiperbólica
Beleza Helênica
Morreu de cólica!"
Moça hiperbólica
Beleza Helênica
Morreu de cólica!"
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