domingo, 7 de julho de 2013

Alvarenga e seus Ranchinhos são uma bela página musical


A música caipira, sertaneja, que hoje genericamente chamam-na “de raiz”, também conhecida como moda de viola (caipira), sempre teve e sempre terá espaço neste blog. Já escrevi sobre a origem dessa bela página da nossa cultura musical – tão ampla, vasta e profunda (clique aqui). Hoje, domingo, dia bom pra recordações, naveguei nas águas de Murilo Alvarenga, mais conhecido como Alvarenga da dupla Alvarenga e Ranchinho.
Na verdade, Alvarenga sempre foi o mesmo nessa dupla que é uma das mais tradicionais do universo caipira. Ranchinho foram três. O primeiro deles foi Diésis dos Anjos Gaia, que cantou com o parceiro de 1933 a 1938. Depois, em meio a alguns intervalos, estiveram junto até 1965. O “segundo Ranchinho” foi Delamare de Abreu, que era irmão de Alvarenga por parte de mãe. Cantaram juntos somente por dois meses na década de 1950, num daqueles intervalos do Ranchinho I. Em 1965, juntou-se a Alvarenga o companheiro que passaria a ser conhecido como “Ranchinho da Viola”, e que tinha o nome de batismo de Homero de Souza Campos. Os dois estiveram juntos até a morte de Alvarenga, em 1978.
Murilo Alvarenga e “seus Ranchinhos” chegaram a gravar 30 LPs e 600 discos em 78 rotações por minutos (RPM), em 50 anos de carreira. Alvarenga tinha um viés político de dar inveja nos manifestantes dos dias de hoje. Na primeira década da carreira, os dois foram presos várias vezes pela polícia do presidente Getúlio Vargas, a quem incomodavam sistematicamente com suas paródias. Mas também faziam músicas ironizando Hitler e Mussolini e políticos locais de todos os escalões. Uma delas era genial. Tinha o título de Liga dos Bichos e tornou-se imortal para quem conhece um pouco da história política brasileira:

“Os bicho têm sociedade/ adonde têm protetor/ na família do seu Galo/ tem muito Pinto doutor/ já vi Leitão professor/ vi Aranha de talento/ mas o que me deixou besta/ foi ver Cavalo sargento/ também vi Coeio fardado/ oficiar de longo curso/ e na crasse dos artistas/ tenho visto muito Urso/ pra chegar a capitão/ a gente quase se mata/ e os bicho sobe na vida/ tem até major Barata/ da maneira que vai indo/ tô vendo que não demora/ os burro monta na gente”.

Alvarenga, muito antes de Chico Buarque de Holanda, escreveu uma letra genial, usando e abusando das palavras proparoxítonas, que virou a canção O Drama de Angélica e pode ser ouvida no áudio abaixo – confiram a letra e vejam se não é de matar de inveja o nosso Chico, autor da bela Construção. Pode-se perceber também, nessa gravação, o quanto Alvarenga tinha voz maravilhosa, que, aliás, foi herdada pelo seu filho Murilo Alvarenga Júnior. No ano passado, ele esteve no programa do Rolando Boldrin, interpretando a maravilhosa Coração de Violeiro (ouçam e vejam abaixo).
Alvarenga foi genial no universo da música popular, assim como Zé Fortuna e Raul Torres, o Bico Doce. Mas aí é outra história. Falo depois.


O Drama de Angélica
Alvarenga e Ranchinho

Ouve meu cântico quase sem ritmo
Que a voz de um tísico magro esquelético...
Poesia épica em forma esdrúxula
Feita sem métrica com rima rápida...
Amei Angélica mulher anêmica
De cores pálidas e gestos tímidos...
Era maligna e tinha ímpetos
De fazer cócegas no meu esôfago...
Em noite frígida fomos ao Lírico
Ouvir o músico pianista célebre...
Soprava o zéfiro ventinho úmido
Então Angélica ficou asmática...
Fomos ao médico de muita clínica
Com muita prática e preço módico...
Depois do inquérito descobre o clínico
O mal atávico mal sifilítico...
Mandou-me célere comprar noz vômica
E ácido cítrico para o seu fígado...
O farmacêutico mocinho estúpido
Errou na fórmula fez despropósito...
Não tendo escrúpulo deu-me sem rótulo
Ácido fênico e ácido prússico...
Corri mui lépido mais de um quilômetro
Num bonde elétrico de força múltipla...
O dia cálido deixou-me tépido
Achei Angélica já toda trêmula...
A terapêutica dose alopática
Lhe dei em xícara de ferro ágate...
Tomou num folego triste e bucólica
Esta estrambólica droga fatídica...
Caiu no esôfago deixou-a lívida
Dando-lhe cólica e morte trágica...
O pai de Angélica chefe do tráfego
Homem carnívoro ficou perplexo...
Por ser estrábico usava óculos:
Um vidro côncavo o outro convexo...
Morreu Angélica de um modo lúgubre
Moléstia crônica levou-a ao túmulo...
Foi feita a autópsia todos os médicos
Foram unânimes no diagnóstico...
Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico
Todo de mármore da cor do ébano...
E sobre o túmulo uma estatística
Coisa metódica como Os Lusíadas...
E numa lápide paralelepípedo
Pus esse dístico terno e simbólico:

"Cá jaz Angélica
Moça hiperbólica
Beleza Helênica
Morreu de cólica!"

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