Uruaçu deste milênio é uma cidade muito diferente daquela... |
...em que nosso querido músico Zequinha viveu sua infância |
Zequinha, batizado José Fernandes de
Carvalho, faz parte da memória cultural de nossa querida Uruaçu, cidade goiana,
situada a 240 quilômetros de Brasília e a 280 quilômetros de Goiânia. Era
daquelas figuras simples, desprovida de maiores ambições e que passaria
despercebido neste mundo não fosse o talento para a música e
uma inteligência aguda, atributos que eram contidos pela timidez e pelas
dificuldades de comunicação das décadas de 1930, 1940 e 1950 – auge de sua
juventude e da vida adulta.
Tornou-se uma pessoa interessante para
nós na década de 1970, quando aprendemos a admirá-lo pelo talento no manejo da
gaita, do violão e da clarineta. Também nos surpreendia por suas tiradas
espirituosas, carregadas de ironia e de sutilezas. Nunca casou porque
considerava a vida “muito boa para se estragar com o casamento”. Quando
perguntávamos se sua gaita era boa, de qualidade, ele respondia sempre e
prontamente: “É boa, made in Germany!”.
Além da gaita tinha uma paixão muito
especial pela branquinha, cachaça pura, de alambique, que, com o passar dos
anos, foi consumindo sua saúde. Mestre Itaney Francisco Campos, poeta e
desembargador, frequentador assíduo das páginas deste blog, escreveu uma
crônica maravilhosa sobre esse dileto cidadão.
Transcrevo o texto para deleite dos
amigos.
Zequinha, sua
gaita e Verlaine
Por Itaney Francisco Campos
Zequinha tinha duas paixões na vida: a gaita de boca, made in Germany, e uma cachaça da boa, de alambique. Na gaita, executava valsas e modinhas, para o deleite dos que tinham paciência com ele. Na cachaça, desfilava trôpego pelas ruas, em busca de outros botecos e também de alguém que, embevecido pela música, lhe pagasse uma dose da branquinha.
Por Itaney Francisco Campos
Zequinha tinha duas paixões na vida: a gaita de boca, made in Germany, e uma cachaça da boa, de alambique. Na gaita, executava valsas e modinhas, para o deleite dos que tinham paciência com ele. Na cachaça, desfilava trôpego pelas ruas, em busca de outros botecos e também de alguém que, embevecido pela música, lhe pagasse uma dose da branquinha.
Zequinha, em álbum de família |
Era manso como um bezerro. Encharcado, distribuía trocadilhos
pitorescos: “O objeto que fura e o soldado, formam a arma alongada, duas e
duas”. Depois que o freguês, embatucado, desistia, dava a solução: “Espinguarda”, e disparava a rir, feliz
com a própria espirituosidade.
Descendia de família tradicional na região, os Fernandes de Carvalho,
oriundos da velha São José do Tocantins, atualmente Niquelândia, para onde
imigraram, nos princípios do século XVIII, em busca das minas de ouro, miríades
proclamadas nos sertões da Bahia e nos povoados do interior da província de São
Paulo. Esgotado o ouro de superfície, os membros da família dedicaram-se às
lides da roça e transferiram-se para o município de Pilar, fundando ali o
arraial de Santana, no começo do século XX.
Era ali que Zequinha desfilava pelas ruas a sua figura franzina, meã,
inofensiva, de tocador de gaita. Quando preciso, tocava também clarinete, nas
funções religiosas. E ainda arranhava violão, nos saraus familiares. Perguntado
sobre o número de instrumentos que tocava, respondia orgulhoso: gaita,
clarinete, violão, cavaquim e outros contingentes musicais, e desatava a rir a
sua risadinha miúda como ele próprio.
Não poucas vezes excedia nas doses, então perdia a graça, tornando-se
babão, e era enxotado pelos donos dos bares e botecos. Nessas situações, virava
alvo das brincadeiras maldosas dos meninos de rua, que ameaçavam tomar-lhe a
preciosa gaita, agasalhada no bolso da calça. Sentado no meio fio, arcando-se
sob o peso da pinga, Zequinha resistia, e insistia no refrão suplicante, a
mirar com os olhos verdes semicerrados o transeunte: “Cê paga uma prá mim?”.
Por essa quadra, eu já me transferira para Goiânia, para os estudos
universitários, e, quando retornava à minha pequena cidade, em gozo de férias,
aquelas cenas de execração pública do humilde boêmio me faziam relembrar as
cenas de perseguição de que fora vítima o sensível poeta Paul Verlaine,
enxovalhado pelos intolerantes nas ruas de Paris. Álcool, haxixe e poesia
moviam Verlaine, Zequinha se alimentava de modinhas, conversas aladas e
cachaça. Por que você gosta tanto assim da pinga, Zequinha? Ele, no ato,
pontificava: “cachaça é bom pra vista, limpa a garganta e clareia os dentes!”.
Zequinha era uma pessoa simples, mas de um talento musical invejável |
Suas estórias permeavam a realidade de toques fantásticos. Sobre a
origem de nossa cidade, relatava que houvera ouro em abundância no rio Maranhão
e que, à margem desse rio, estabelecera-se, no século XIX, um imigrante
português, com o estranho nome de Manuel K-O-S-US Pereira Machambombo. O
sobrenome desse garimpeiro incorporou-se ao ribeirão que tinha curso na fazenda
e, posteriormente, ao arraial que ali se formou: Santana do Machambombo.
Acrescentava que um lustro depois, o lusitano teve de retornar à terra
natal, intempestivamente, e deixou ali enterrado, nos arredores do seu casebre,
nas proximidades de um pé de angico, um saco abarrotado de ouro, parte do volume
que extraíra do leito do rio. Inclusive, enfatizava, para dar foros de verdade
à sua narrativa: “Dito de Jesus tem conhecimento do local desse pé de angico”.
Dando asas à sua imaginação fértil e provocado por nós estudantes, Zequinha
contava que havia tanto ouro na região, tanta abundância do minério que no
arraial de Traíras, nas procissões para o batizado dos infantes, os pais, os
padrinhos iam em séquito e, à frente, furando covas e plantando ouro, iam os
escravos da família.
Ante os nossos risos incrédulos, Zequinha afirmava enfático que se
tratava de um ritual para assegurar prosperidade na vida do infante. E, para o
nosso espanto, acrescentava: “Naquele tempo, o ouro não valia nada”. Nós ríamos
a mais não poder. E Zequinha ingressava, rindo também, em nossas risadas, para,
em seguida, tocar mais uma música, pedir uma pinga e lamentar uma paixão
perdida.
Solteirão beato, dele, dizíamos pândegas: “casara-se com a pinga”. Ele
acrescentava: “e com a gaita”. Em microdimensão, Zequinha era o nosso poeta; no
seu sossego, no seu desapego aos bens materiais, no seu amor à música
brasileira de raízes lusitanas, tinha a dimensão de um Verlaine. Na sua boemia
inconsequente, deixou o exemplo de um camarada que nunca desejou ou fez mal a
qualquer pessoa. Morreu aos setenta e dois anos, sem um gemido, como um
passarinho, sozinho, no barracão em que morava, numa ponta de rua.
Seu tratamento da matéria foi primoroso. Obrigado por dar visibilidade ao meu texto. Fico gratificado. Esse contraste entre a Uruaçu antiga e a agitada cidade de hoje foi muito interessante. Parabéns, uma vez mais.
ResponderExcluirCaro Zé realmente o meu primo em segundo grau Itaney está corretíssimo em dizer que o tratamento da matéria foi primoroso. Porém você esqueceu de citar uma outra habilidade do meu saudoso tio zequinha. A de saber informar as horas sem relógio, apenas observando o movimento da sombra ao redor do corpo ou seja pelo sol. E quero informar que zequinha não morreu sozinho e sem cuidados, pois isto é coisa que a minha querida avó Flauzina não aceitaria deixar o seu irmão sozinho desta forma. Ele faleceu no hospital Santana sob incansáveis cuidados médicos e familiares que na ocasião era representada pelo meu pai Toninho. Charles F. Carvalho.
ResponderExcluirCaro Charles, obrigado pela sua participação e acréscimo de informações sobre o nosso querido Zequinha. Faço apenas uma observação. Quando o Itaney finaliza a crônica sobre o modo que ele morreu, na verdade está criando uma visão poética, metafórica. Ele está querendo dizer que nós, que o admirávamos, deveríamos estar lá, ao seu lado, valorizando a sua existência. Acho que não podemos interpretar essa parte da crônica ao pé da letra. Grande abraço.
ExcluirFicou perfeitos ombos os textos. Eu comvivi com o Zequinha. Ele era uma figura pitoresca de nossa cidade. A muito querida tbem.
ResponderExcluirConheci o Zequinha. Tivemos pouca convivência mais me lembro bem, quando tocava a sua gaita, acompanhava a música batendo o pé. Alguém descobriu que impedindo o movimento do pé, ele deixava de tocar. Soltando o pé ele retornava a música. Assim, alguns da nossa turma, fizemos por algumas vezes...
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