sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Crônicas sobre Folia de Reis na região de Monte Carmelo


Nathália e Luara: crônicas de Folia
Como hoje é Dia de Reis, lembrei do trabalho que Luara Nunes – estagiária lá na Caesb e hoje formada em Comunicação – estava fazendo na região de Monte Carmelo, sobre Folia de Reis, do ponto de vista de um trabalho jornalístico e literário. O que era pra ser apenas um trabalho acadêmico, dela e da colega Nathália Coelho, virou um livro que está nos preparativos finais para publicação, com o título de “Mosaico mineiro: crônica da Folia de Reis e de Monte Carmelo”.  A escolha do tema se deu pelo gosto das duas pelo jornalismo literário e cultural.
O objetivo então, segundo me contaram, foi documentar, por meio de um livro de crônicas e fotografias, as histórias de vida e fé dos habitantes de Monte Carmelo (MG), bem como da festa popular cultural realizada na cidade, a Folia de Reis. Para tanto, uma pesquisa de campo foi feita no município durante os dez primeiros dias do mês de janeiro de 2011.
O gênero jornalístico no formato de “crônica” foi o escolhido como o mais adequado para perpetuar e interpretar, por meio da escrita, o significado da folia para a comunidade interiorana.
As meninas deram um show e o trabalho delas foi aprovado na Faculdade de Comunicação com louvor. Reproduzo abaixo duas crônicas escolhidas pelas próprias autoras, que passam a ser uma pequena amostra do livro que será lançado em breve. Pra quem gosta de crônica, jornalismo e Folia de Reis, esses são dois textos interessantes.

A Estrada da Folia da Roça
Por Luara Nunes

Preparada para desbravar o desconhecido, ela foi com sua mente vazia de vivências, mas com algumas idéias. Como seria ver de perto uma celebração, que ela só viu e sentiu em letras de forma pretas em páginas brancas?
A menina que pensava com a razão e fazia tudo mecanicamente entrou no carro. Levava com ela uma pauta na mão e um roteiro precisamente elaborado em um caderno cor-de-rosa. Na mochila, os aparatos jornalísticos: máquina fotográfica, bloquinho, caneta, gravador, celular com filmadora e umas balinhas de canela.
Ela não conhecia o caminho e nem a cidade. Falaram que ocorreria uma folia na Fazenda Santa Bárbara. A menina pensou:
Essa folia vai dar excelentes fotos e histórias. Ótimo material. Material, era só o que pensava.
Quinze minutos de carro, a paisagem ainda era o comum de cidade de interior. Pessoas proseando nos banquinhos da praça, bicicletas passando de um lado para outro, o vendedor de queijo batendo de porta em porta e as crianças brincando despreocupadas na rua. Enquanto isso, passava um filme na cabeça da menina. Ela pensava em como seria a fazenda. Sua imaginação buscava as imagens das novelas assistidas. Ótimos cenários, será que era igual? Grandes indagações, qual será o melhor ângulo para tirar fotos?   
Vinte minutos de carro, o asfalto foi virando estrada de chão, e já não havia pessoas nem casas, era somente o verde da natureza. Mangueiras, palmeiras, árvores do cerrado. Hibiscos, ipês amarelos e rosas. Córregos, pequenas cachoeiras. Vacas, bois, potrinhos, cavalos, burrinhos. Andorinhas, periquitos, bem-te-vis. A paisagem surpreendeu a imaginação da menina e daí por diante seu roteiro foi largado de lado. Tudo era imprevisível, tudo era mágico, tudo era sentimento e não racionalidade.
O silêncio puro da estrada da roça era algo que ela não poderia presumir, somente sentir. O silêncio era música. Uma música composta pelo dedilhar do vento sobre as folhas das árvores com o canto manso dos pássaros.
O ar puro da estrada refrescava a alma. Para a menina a experiência foi como de um beijo apaixonado. Dava arrepios e a cada momento, ficava a vontade de querer mais. Nunca a menina poderia imaginar que uma estrada fosse mexer tanto com seus sentimentos assim. Amor, paz e tranqüilidade. Ela estava em êxtase. Seu coração batia e ela pela primeira vez o sentiu.
A natureza falava por si e mostrava sua beleza. Suas cores e formas abraçavam a menina com calor, com paixão. Seduziam-na com seu cheiro, como um encanto. E a consciência lógica de uma menina obcecada pela regra foi se deixando levar pela estrada.  Uma estrada que mudou para sempre os rumos da sentimental menina racional. 


O pano sagrado
Por Nathália Coelho

Eu nunca tinha visto um pano tão bonito. Mamãe sempre me dizia que além de bonito, ele era sagrado também. E sempre que havia Folia de Reis, me fazia beijá-lo em meio ao nome-do-pai. “Encosta, menino. Você pode receber um milagre. Pede com fé.” E eu cresci assim. Acreditando nas palavras de minha mãe e participando, todos os anos, daquele ritual que aprendi a amar e depois de adulto a participar. O pano é a Bandeira de Reis. Um dos principais símbolos da Folia.
Juro! Toda vez que pegava naquela bandeira eu me arrepiava todinho. Era como se uma força estivesse passando por dentro do meu corpo, parando no coração, que pulsava compassado às cantigas de viola. Era um momento feliz de se viver. Não entendia direito o que era aquilo. Meu pai dizia, na sua imensa sabedoria, que era a mão de Deus abraçando minha alma. E eu assentia com a cabeça, repousando naquela reflexão. Quando ela ia embora carregada num pedestal, feito geralmente de um cabo de vassoura, eu até sentia saudade. E acenava para o menino Jesus desenhado:
Vai com seu Papai do céu!
Às vezes eu ficava a festa inteira só observando a bandeira jogada aos pés de Nossa Senhora. A família festeira sempre fazia um altar, colocava três velas e quando os tocadores paravam de cantar, estendiam a bandeira sobre a mesa e todos no ambiente rezavam o terço. Eu só ficava olhando pra ela, toda colorida e cheia de flores. Cada grupo de folia tinha a sua. Algumas eram pintadas com tinta, mandadas fazer numa malharia. Outras eram construídas em casa, por alguma esposa de cantador. Umas, após o giro completo da folia, ficavam cheias de penduricalhos, como fotos, dinheiro, bilhetes, tudo ofertado a Santos Reis. E sabe, essas eram as que eu mais gostava. Tinha cada coisa! Uma vez eu li assim: “Santos Reis, cura minha mãe de brigar comigo. Por favor. Amém.” Olha pra isso! Vê se briga de mãe era doença! Na época eu achei tão legal que reforcei o pedido da menina e aproveitei pra pedir a cura da minha mãe também. Mas como briga não era enfermidade, acho que não deu certo.
Só que de todas as minhas lembranças da bandeira, não tem uma mais forte que a dos meus nove anos de idade. Naquele ano meu pai foi chamado pra tocar numa Folia da Roça e eu fui com ele. No carro, eu pedi pra segurar a bandeira no meu colo. Eles deixaram. Era um dia lindo de sol. Quando chegamos, eu fiquei encantado. O lugar parecia com aquelas fazendas antigas, da época da escravidão, que eu estudava na escola. Podia até ouvir a voz da professora dizendo:
Presta atenção classe! Portanto, quem foi Zumbi dos Palmares, mesmo?
Estava tudo muito enfeitado. Muita gente esperando a chegada do meu pai e do grupo. Enquanto eles afinavam os instrumentos, eu segurei a bandeira e saí correndo para conhecer o território. Fui ao chiqueiro, galinheiro, brinquei no curral, subi em árvores, peguei um monte de flores. E nem lembrei que estava com a bandeira sagrada debaixo do braço. No meu sumiço, todo mundo ficou doido atrás do pano. “Não é possível que você esqueceu a bandeira, Zé!”, gritava um. “Uai, sô, era pra tá aqui.” Foi quando ouvi a voz aguda da minha mãe chamar:
Felício, menino de Deus, onde foi que ocê se meteu! Felício!
Foi nesse momento que eu cai em mim, olhei pro lado e vi um pedaço de tira toda suja de lama do meu lado. Subiu-me um pânico e um medo. Meu coração acelerou. Meus dedos começaram a suar frio. Sem perceber, minha boca falava sozinha.
Baltazar, Gaspar e Belchior, perdoa eu. Perdoa eu, perdoa eu! Não fiz por mal. Pai nosso que estais no céu, santificado seja vosso nome, venha nós o vosso reino...
Ajoelhei, juntei minhas mãos e pedi com tanta fé para que tudo se resolvesse e minha mãe não brigasse comigo. Depois, deitei em cima da bandeira e encostei minha cabeça numa pedra de lado. Meus olhos fitavam o olhar de Jesus. Foi aí que aconteceu o milagre. Eu vi o menino piscando pra mim. Verdade! Em meio a monte de sujeira, eu vi Cristo piscando pra mim. Ele mexeu o olho. Passei a mão no rosto, e vi de novo. Dessa vez ele até sorriu. E eu? Sorri também.
Felício, quando eu te encontrar, você vai apanhar tanto, muleque!
A voz da minha mãe ao fundo parecia cada vez mais perto, e eu nem ligava mais. Meu coração havia ficado brando como a brisa que balançava meus cabelos lisos. Eu não consegui falar nada com Jesus, só fiquei admirado vendo-o sorrir. De repente, ele pronunciou:
Confie. Vai dar tudo certo.
E eu fechei os olhos apertando a bandeira contra meu peito. E minha mãe berrava “Felício!” E Jesus balbuciava, “vai dar tudo certo.” As notas musicais se fundiam. “Oh Deus salve o oratório!”, “Felício!”, “Onde Deus fez a morada...”, “Vai dar tudo certo.” Todas as vozes ecoavam dentro de mim, misturavam-se, oscilavam.
Acorda, meu filho! Chegamos.
O carro deu um solavanco na ponte de madeira e meus olhos finalmente se abriram.
Mãe?
Sim.
Uai... a gente já não tinha chegado?
Como assim, Felício? Acabamos de chegar.
É, menino. Para de marmotagem, e entrega a bandeira pro Seu João quando sair do carro. É ele quem vai levar. – disse meu pai ao volante.
Pai, posso te pedir uma coisa?
Fala.
Deixa eu entrar com a bandeira hoje, por favor.
Vou falar com Seu João. Mas acho que ele vai deixar. É só cuidar bem da nossa bandeira. Ela é sagrada.
Oba! Obrigado, pai. disse contente.
Seu João deixou. Eu entrei com a bandeira, meu pai e os demais vieram atrás tocando e rezando ao mesmo tempo. Passamos pelo arco florido e chegamos até o rei da festa. Com ele do meu lado, coloquei a bandeira no altar. Ajoelhei e fiquei observando o menino Jesus. E por um instante, tive a impressão de que ele havia piscado pra mim. Será mesmo? Eu acreditava, afinal a bandeira fazia milagres! 


Nenhum comentário:

Postar um comentário