quarta-feira, 16 de março de 2011

Césio 137 e o dia em que o repórter virou notícia

Tragédia do Césio 137, em Goiânia (GO), contaminou mais de 112 mil pessoas

A tragédia que vive o povo japonês, depois do terremoto, do Tsunami e, agora, com os seguidos vazamentos de radiações nucleares, traz à nossa memória o acidente nuclear com o Césio 137, em Goiânia, no mês de setembro de 1986. As causas da tragédia goiana, todos nós sabemos: o descuido e o descaso daqueles que abandonaram o equipamento de radioterapia em terreno baldio. O material, aberto e manuseado por algumas pessoas, tinha um colorido azulado, exuberante, e atraiu a curiosidade de adultos e crianças.
Os números da tragédia também são bastante conhecidos. Mais de 112 mil pessoas foram contaminadas, centenas foram hospitalizadas e pelo menos quatro morreram em curto prazo de tempo. O lixo radioativo recolhido chegou a 13 toneladas. Centenas de pessoas sofrem até hoje alguma consequência daquele acidente.
Dezenas de jornalistas deslocaram-se diretamente para Goiânia e a tragédia virou destaque em jornais de todo o mundo. O tema virou pauta de jornais, rádios e televisões em várias cidades brasileiras.
É aí que entra o meu amigo Maranhão Viegas, grande jornalista, dono de um texto maravilhoso. A preocupação com aparelhos radioativos que, por algum acaso, pudessem não estar guardados adequadamente, chegou a Campo Grande (MS). E a pauta sobrou para Maranhão Viegas, e ele foi a campo. Mas, deixemos o repórter, que acabou virando notícia, contar o que aconteceu, com suas próprias palavras.


“Naquela noite, tive dificuldade para dormir”

Por Maranhã Viegas, jornalista

Nessa época, eu era repórter da TV Morena, afiliada da Rede Globo, em Campo Grande, MS. E no auge das investigações e das análises do que havia ocorrido em Goiás, descobrimos que havia um equipamento similar ao que provocara o desastre de Goiânia, no Hospital Universitário, em Campo Grande.
Maranhão Viegas, repórter em 1986
A pauta investigativa caiu em minhas mãos. Ela pedia que se mostrasse como funcionava o equipamento e as condições de manutenção e de segurança do ambiente onde ele estava instalado. Lá fui eu, numa manhã de sexta-feira cumprir a pauta.
Na véspera, Mara havia viajado para o Sul. Fazia pouco que a gente tinha descoberto – ela estava grávida da nossa primeira filha, Mariana, e iria passar uns dias com a família em Santa Rosa. O presente e o futuro tomavam conta da minha cabeça naquele instante. A família crescendo e a paixão pelo jornalismo também. Era um bom momento.
No Hospital Universitário, não demoramos a achar o setor onde estava a bomba de Césio 137. Ramon Carlos Pereira era o cinegrafista que me acompanhava desde os tempos do SBT. Formávamos uma dupla inseparável. Nos entendíamos por olhares. A imagem dele completava perfeitamente o meu texto. Quando fui contratado pela TV Morena, lutei e consegui que ele fosse também.
O espaço era pequeno e a imagem pobre. Mas o Ramon era craque e, enquanto eu conversava com a médica responsável pelo setor, ele ia descobrindo os melhores ângulos, as melhores cenas. A doutora me explicava que o césio 137 era uma fina pastilha que ia para a máquina ladeada por duas outras pastilhas de cobre, no mesmo formato.
Enquanto me explicava, ela me mostrou as pastilhas de cobre e eu comecei a fazer a “passagem” da matéria segurando com uma pinça uma daquelas pastilhas de cobre. Passei o texto uma vez, ensaie o movimento de câmera e comecei a gravar. Enquanto gravava, percebi a chegada de uma enfermeira apavorada, gesticulando muito. Interrompi a gravação.
A mulher chamou a médica num canto e falou algo. Comecei a ficar preocupado. Eu e o Ramon. Quando a médica se voltou pra nós, o pavor se instalou. Ela estava pálida. E nos dizia ter ocorrido um erro grave. Aquilo que estava na pinça, em minhas mãos, não era cobre. Era o próprio Césio.
Meu desespero só não foi maior do que o do Ramon. Ele parou de gravar e saiu da sala correndo. Fiquei lá, meio atônito, sem saber direito o que fazer. Em um segundo, o filme da minha vida passou inteiro em minha mente. O futuro e o presente. A gravidez da Mara, minha profissão... Tudo.
Com o pouco de controle que ainda tinha, pensei: precisamos saber o nível da radiação. Deve haver um medidor Geiger aqui. Não demorou muito e apareceu um. E já estava fora da sala, mas nunca mais esqueci o barulhinho que o aparelho fez, indicando a presença de radiação ao passar pelo meu corpo.
A notícia se espalhou no hospital. Houve um certo pânico. Nenhum maior do que o meu e do Ramon. Corremos para o carro. Aquela altura, a matéria tinha ficado em segundo plano. Nós havíamos virado notícia. No carro, sentimos a primeira medida da histeria – o motorista se recuava a dividir o espaço com a gente. Foi um custo convencê-lo a nos levar de volta à TV.
Quando chegamos à TV, todo mundo já sabia o que havia acontecido. Entramos na redação e ela estava vazia. Todos dispensados para não ter contato com a gente. Minha "chefa" imediata, Ecilda Stefanello, responsável pela sugestão da pauta, me deixou uma carta testamento. Ela pedia desculpas pela pauta e lamentava o ocorrido. No desespero, fui pra casa.
Agradeci a Deus pelo fato da Mara estar viajando. Antes de entrar em casa, tirei toda a roupa. A desinformação e a angústia sugeriam que aquela fosse uma boa medida. Passei direto para o quintal tentando não tocar em nada. Abri uma torneira e gastei uma barra de sabão inteira, num longo banho em que quase perdi a pele, de tanto me esfregar.
Foram as horas mais angustiantes da minha vida. Já no início da noite, consegui um contato com o coordenador da Comissão Nacional de Energia Nuclear, que estava em Campinas. As palavras dele me trouxeram um alívio imediato. De fato, eu e o Ramon havíamos sofrido exposição a material radioativo. Mas o tempo que permanecemos na sala, cerca de uma hora, e a quantidade do material existente ali não nos ofereciam um risco maior.
Naquela noite e nos dias seguintes, tive dificuldade para dormir. A vida só voltou ao normal depois de uma bateria de exames especiais que nos livrou do fantasma da radiação. A reportagem, acho, nunca foi ao ar. Tentei mover uma ação contra o hospital, mas não deu em nada. Eu e o Ramon reforçamos ainda mais a nossa amizade e fizemos ainda muitas reportagens juntos, até que cada um seguisse o seu caminho. A Ecilda, minha "chefa", virou minha sócia, numa jornada que durou mais de doze anos (mas isso é outra história).
Tempos depois, o incidente virou motivo de boas gargalhadas. Hoje, entretanto, me vem à mente e me remete ao sofrimento do povo japonês diante da enorme catástrofe atômica que se desenha. Há quase 25 anos eu vivi uma experiência infinitamente menor do que essa. Não menos apavorante, eu garanto.

Um comentário: