terça-feira, 22 de março de 2011

Vitor Ramil e a riqueza musical brasileira

Vitor Ramil (foto), irmão dos artistas Kleiton e Kledir, é daqueles músicos que nos fazem orgulhar da música popular brasileira, tão diversificada de ritmos, culturas, tradições e de variações melódicas inusitadas. Se percorrermos o País de Norte a Sul, de Leste a Oeste, ficaremos emocionados com a riqueza musical do povo brasileiro.
O Brasil do baião, do xaxado e do forró, mergulha pelo frevo, passa pelas origens do samba na Bahia, com todas as suas peculiaridades, deságua no samba carioca, com uma musicalidade particularíssima e riqueza de letras e interpretações. É o mesmo samba que tem roupagem própria em São Paulo, com Paulo Vanzolini e Adoniram Barbosa.
Esse Brasil, tão brasileiro, inventou a bossa-nova e a batucada, como diria Assis Valente, “pra deixar de padecer”. Brinca com os tambores do Maranhão e as variações de ritmos do Norte brasileiro. Passa pelo Centro-Oeste e faz dedilhar a viola, os ritmos sertanejos e folclóricos... Minas Gerais fica ali, silenciosa, com uma riqueza musical que tem a dimensão de um país, embora seja brasileira até na alma.
Quando chegamos ao Sul, deparamos com uma riqueza peculiar, própria de países fronteiriços, com influências diversas de ritmos, melodias e uma presença forte da literatura na música.
Vitor Ramil sabe, melhor do que ninguém, explorar, retratar, ampliar essa riqueza. Seus trabalhos são ousados na busca de novos caminhos, novas linguagens, sem perder a ternura, jamais, de suas raízes. Nas três décadas de sua carreira artística, visitou o tango, foi milongueiro, gravou em Buenos Aires, foi gravado por Mercedes Sosa e fez parceria com o percussionista carioca Marcos Suzano, que resultou no curioso Satolep Sambatown. Satolep é um anagrama de Pelotas, sua cidade natal, e Sambatown, um reconhecimento de que o Rio de Janeiro é mesmo a cidade do samba.
Seu trabalho marcante é Ramilonga – a estética do frio, pela contundência das suas ideias, pela originalidade de sua concepção e por ter inaugurado as sete cidades da milonga: Rigor, Profundidade, Clareza, Concisão, Pureza, Leveza e Melancolia.
Seu último trabalho, lançado em março do ano passado, é Délibáb, que é um fenômeno ótico comum nas planícies da Hungria. A palavra é originada da junção de deli (do Sul) com bab (baba, ilusão). Pode ser traduzido, a grosso modo, como miragem. Desta vez, a parceria é com o argentino Carlos Moscardini. Traz um repertório só de milongas, e reúne músicas compostas por Vitor Ramil para poemas do argentino Jorge Luís Borges e do brasileiro João da Cunha Vargas.
Vitor explica que as milongas para os versos de Borges são, em geral, mais clássicas, épicas ou rítmicas, fieis à afinação tradicional do violão. Já nos poemas de Vargas, as músicas são mais brasileiras, líricas e sentimentais.
É importante conhecer essa diferença entre dois universos da poesia e das milongas. Mais importante, porém, é conhecer o trabalho de Vitor Ramil, a beleza de suas composições e o seu talento. Um bom momento para refletirmos sobre a música popular brasileira e o valor exagerado que se dá para trabalhos apenas comerciais, limitados e muitas vezes vulgares. Enquanto isso, talentos como esse de Vitor Ramil, e tantos outros, não ganham a dimensão que merecem.
Leiam os poemas abaixo, ouçam e vejam a musicalidade e as interpretações geniais do artista gaúcho. 

Deixando o Pago
Composição: Vitor Ramil
(poema de João da Cunha Vargas)


Alcei a perna no pingo
E saí sem rumo certo
Olhei o pampa deserto
E o céu fincado no chão
Troquei as rédeas de mão
Mudei o pala de braço
E vi a lua no espaço
Clareando todo o rincão


E a trotezito no mais
Fui aumentando a distância
Deixar o rancho da infância
Coberto pela neblina
Nunca pensei que minha sina
Fosse andar longe do pago
E trago na boca o amargo
Dum doce beijo de china

Sempre gostei da morena
É a minha cor predileta
Da carreira em cancha reta
Dum truco numa carona
Dum churrasco de mamona
Na sombra do arvoredo
Onde se oculta o segredo
Num teclado de cordeona

Cruzo a última cancela
Do campo pro corredor
E sinto um perfume de flor
Que brotou na primavera.
À noite, linda que era,
Banhada pelo luar
Tive ganas de chorar
Ao ver meu rancho tapera

Como é linda a liberdade
Sobre o lombo do cavalo
E ouvir o canto do galo
Anunciando a madrugada
Dormir na beira da estrada
Num sono largo e sereno
E ver que o mundo é pequeno
E que a vida não vale nada

O pingo tranqueava largo
Na direção de um bolicho
Onde se ouvia o cochicho
De uma cordeona acordada
Era linda a madrugada
A estrela d’alva saía
No rastro das três marias
Na volta grande da estrada

Era um baile, um casamento
Quem sabe algum batizado
Eu não era convidado
Mas tava ali de cruzada
Bolicho em beira de estrada
Sempre tem um índio vago
Cachaça pra tomar um trago
Carpeta pra uma carteada

Falam muito no destino
Até nem sei se acredito
Eu fui criado solito
Mas sempre bem prevenido
Índio do queixo torcido
Que se amansou na experiência
Eu vou voltar pra querência
Lugar onde fui parido



Milonga de Manuel Flores

Composição: Vitor Ramil
(poema de Jorge Luís Borges)

Manuel Flores vai morrer
Isso é moeda corrente
Morrer é um costume
Que sabe ter toda a gente

Amanhã virá a bala
E com a bala o olvido
Disse o sábio Merlin
Morrer é haver nascido

Apesar disso me dói
Despedir-me da vida
Essa coisa tão de sempre
Tão doce e tão conhecida

Olho na alba minhas mãos
Olho nas mãos as veias
Com estranheza as contemplo
Como se fossem alheias

Quanta coisa em seu caminho
Esses olhos terão visto
Quem sabe o que verão
Depois que me julgue Cristo

Manuel Flores vai morrer
Isso é moeda corrente
Morrer é um costume
Que sabe ter toda a gente


2 comentários:

  1. É incrível como são semelhantes os timbres da voz de Victor Ramil e de Caetano Veloso. Aliás, eles gravaram juntos, nesse mesmo CD, um disco excelente! Brilhante a idéia de divulgar esse belo trabalho da melhor arte brasileira, de múltiplas facetas. Abraços.

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  2. Zeca,
    foi um prazer descobrir em teu blog os vídeos com Vitor Ramil, abs, raquel

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